Temas e Controvérsias

A MATANÇA DE ESTUDANTES EM REALENGO (II): seus possíveis determinantes socioculturais

1- Divisão das pessoas em “vencedores e vencidos” (“Winners and loosers”)

Esse não é um tipo de crime exclusivo dos EUA (Gláucio Soares, OGLOBO, 17/04), mas foi lá que atingiu seu paroxismo. Associa-se a uma revolta de fracassados em sociedades onde parece não haver lugar para “perdedores”. Nesse “jogo” muito cruel, tudo “vai bem”, enquanto os perdedores apenas se suicidam, caem na sarjeta, morrem alcoolizados ou em hospitais psiquiátricos: nada mais do que o desfecho de um destino já traçado por décadas de humilhações. De vez em quando, entretanto, alguns desses “loosers” não se conformam tão passivamente com o seu destino e resolvem “virar a mesa”, levando consigo alguns dos “vencedores” e vários inocentes. O crime é, então, atribuído apenas a um desequilíbrio mental e, depois da comoção inicial, a situação retorna ao seu status quo. Na base de tudo isso, está o culto ao individualismo nas suas expressões mais extremadas, ou seja, mesmo quando violenta um interesse social mais elevado. De estranhar, é que isso seja estimulado em culturas que professam a religião que tem o PRÓXIMO como sua referência. A manifestação “virtuosa” desse mesmo individualismo seria o “sonho americano”. Aquilo que vamos tentar demonstrar, é que o “crime americano” nada mais é do que a outra face desse mesmo “sonho…”.

Quase todos os que venceram por seus “próprios méritos” (admitamos, para efeito de raciocínio) tendem a achar que “basta querer” para ter sucesso. Dessa forma, os “fracassos” (com ou sem aspas, dependendo dos valores de cada um) seriam mera culpa dos “fracassados”. Nada mais natural, então, que paguem por isso…e seus filhos também. Há pouco, em nossa terra, Obama repetiu ser sua própria trajetória uma prova de que basta ser determinado e querer para alcançar os sonhos, etc. Esse discurso talvez seja sua maior traição ao inédito movimento social que o levou àquela posição. O “fenômeno Obama” está muito para além da pessoa Obama. Contrariamente às suas palavras, sua ascenção foi fruto do primeiro abalo sofrido pelo tal “sonho americano”¹. Diz o seu “enunciado tácito”: “se v. é inteligente, capaz e determinado (e sem muitos escrúpulos, acrescentemos), vai ter sucesso e enriquecer na América“. Antes de tudo, porém, nada de participar de movimentos coletivos ou sociais, ou, se for o caso, valer-se deles apenas como um “trampolim” para seu sucesso pessoal.

Quem pode duvidar da existência de pessoas mais capazes, inteligentes e determinadas em todas as sociedades? Seria demais, entretanto, esperar que essas qualidades fossem exercidas no interesse da sociedade como um todo, ainda que associadas a alguns privilégios individuais? Como pode uma sociedade desenvolver lutas coletivas, se quase todos os mais capazes para sua liderança são cooptados por um discurso que privilegia o individualismo? Que os mais fracos permaneçam entregues à própria sorte! O que ninguém parece ter percebido, é que o “fenômeno Obama” só se deu porque, pela primeira vez nos EUA, inúmeras pessoas, muito competentes, apostaram em: movimento coletivo/compromisso social e VENCERAM. Quer dizer…: “ganharam, mas não levaram”, uma vez que o próprio se deixou levar pela vaidade, e, cada vez mais, está se parecendo com R.Reagan, em seus trejeitos.

2- Banalização do comércio e uso de armas

Aqui quase tudo já foi dito e a dificuldade para resolver a questão todos já sabem de onde vem: dos interesses da indústria armamentista. Em nenhuma outra situação, a ação funesta da pior mazela da democracia: os “lobbyes”, fica tão evidente. Esse próprio termo, aliás: saguão, vestíbulo, é uma confissão da violência que sua ação representa contra o espírito democrático. É nas conversas fora do plenário que os mais inconfessáveis interesses são negociados. “Se o povo soubesse como se fazem as leis e as linguiças, não respeitaria umas nem comeria as outras” (Bismarck)
A humanidade desenvolveu diversas armas no curso de sua história e, sem elas, não teria sobrevivido. O revólver, entretanto, foi desenvolvido exclusivamente contra o PRÓXIMO e é para ser usado apenas quando o próximo está próximo.

3-Banalização da violência em geral

Quem entra em um simulador de vôo está se preparando para pilotar um avião e isso se dá em relação a qualquer tipo de simulador. Depois de muito simular alguma coisa, a necessidade de levar aquilo à prática torna-se imperiosa. Quando “jogamos” demais com uma máquina qualquer, depois de certo tempo, é a máquina que passa a nos “jogar”, especialmente quando tudo isso se passa de forma solitária. Algo de muito diferente se dá em relação às brincadeiras infantis de “mocinho e bandido”, nas quais as crianças tentam elaborar, à sua maneira, as situações dramáticas vivenciadas.

Por fim, há que registrar uma crônica de nossa missão no Haiti. Depois das desastrosas experiências com franceses, americanos, ingleses, etc., os haitianos receberam nossas tropas com um misto de ceticismo e curiosidade. Foi lá a seleção…e pairou no ar alguma simpatia mútua. A paralisia e o impasse, entretanto, continuaram. À volta, e pelos cantos, tudo era lixo. Um dia, um militar anônimo sugeriu que a tropa calçasse luvas e fosse recolher uma parte do lixo que imperava pelas ruas. Quando iniciaram sua faina, tiveram a grata surpresa de ver um número crescente de haitianos se associando ao trabalho. Estava vencida a barreira e tudo começou a fluir. A mensagem era clara: se eu o amo, estou disposto a lidar até com as suas “sujeiras”. Já imaginaram se as mães dissessem para seus filhos recém-nascidos: “Só vou te pegar se parar de se sujar”?

“…Mário, eles não lavam os pecados, nem a cara!

Os homens são horríveis!
POR ISSO, HÁ QUE OS AMAR…” 
M. Bandeira “Variações sobre o nome de M. Andrade”

¹A esforço de associar o atirador a grupos terroristas islâmicos repete a velha tendência a atribuir a outros povos responsabilidades que são nossas mesmo: “O problema não é o modo de vida ocidental, mas a inveja que outros povos têm do seu sucesso!”. Os vampiros vieram dos Balcãs; a cocaína da A. do Sul, o ópio da China; a AIDS da África; a tortura pelo Estado americano não é aplicada em solo americano (suprema hipocrisia!). Fábula: “Um lobo, bebendo água no alto de um morro, grita para um cordeiro lá em baixo: Pare de beber, pois v. está sujando a minha água!”. Quando o atirador buscou aquela última identificação, todo o mal já estava preparado. A melhor maneira para que nada mude é jogar a culpa sobre os outros.

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ