Temas e Controvérsias

A SAÚDE…E A DOENÇA DOS PRÓCERES DA REPÚBLICA

(...Até que a doença nos aproxime...Antes que a morte misture nossas cinzas!)

As sérias doenças que atingiram aquela que veio a ser nossa presidente e, agora, o ex-presidente, podem servir como um bom instrumento de reflexão sobre a importância da assistência pública à saúde entre nós. Despertamos, finalmente, para o problema. Que os governantes sintam na própria pele a fragilidade da condição humana, há de fazer com que pensem no desamparo daqueles que não dispôem de assistência. Ainda que, por origem, estejam próximos às pessoas do povo, o risco de se sentirem semideuses é enorme. Quem sabe se, provando o “lado podre da maçã”, deixaremos (todos) de dizer que a saúde precisa de “fontes especiais de recursos”, como se os recursos arrecadados normalmente estivessem destinados a coisas “mais importantes”? O que foi prioridade nas campanhas, tem que ser prioridade no orçamento. Qualquer coisa diferente deve ser considerado “estelionato eleitoral”.

Dentre as muitas tolices que os detratores do ex-presidente têm postado sobre sua doença, pelo menos uma tem algum fundamento e merece ser discutida: a que indaga quanto ao porquê de ele não ser atendido pelo SUS. Afinal, uma das maiores garantias para o bom funcionamento, por exemplo, da cozinha de um hospital ou presídio, é sua direção comer da mesma comida que os usuários. Deixando de lado o fato dele dispor de seguro saúde—é bom que o use, de maneira a poupar recursos públicos—há aqui um equívoco, que tentaremos demonstrar.

Cobrar que os próceres da República passem pelos mesmos processos que a gente do povo, é esquecer de que essas pessoas representam a própria República, ou seja, são (naquele momento pelo menos) muito mais do que elas mesmas. Essa cobrança faz lembrar dos ataques ao “AEROLULA” e talvez alguns achem que a solução para os problemas dos aeroportos passa por ver Dilma na fila de embarque. Há nisso um manifestação de subdesenvolvimento, além de uma boa dose de inveja. Para o bem do país, é importante que essas pessoas—cujas ações influenciam a vida de todos, e que dedicam quase todas as suas horas àquilo que julgam ser o melhor para o país—disponham de alguns privilégios, que são, em verdade, PRERROGATIVAS do cargo.

Já a meta de que cada cidadão brasileiro possa dispor do que há de mais avançado em matéria de assistência médica, a exemplo dos governantes máximos, deveria ser de todos os membros do MS. Não é de conforto ou praticidade que estamos falando nesses casos, mas da própria vida. Mais do que isso: da tranquilidade que o saber dispor desses cuidados provoca em todas as pessoas, até mesmo quando saudáveis. Nada tranquiliza mais os responsáveis por uma família do que ter um médico e/ou um serviço médico de confiança. Esse não deve ser privilégio dos ricos.

Quem pode negar a determinação dos atuais responsáveis pelo MS de, efetivamente, fazer melhorar a saúde pública, acabando com a corrupção em sua pasta e otimizando o uso de seus recursos? Há, entretanto, entre eles, tantos saudosistas dos heróicos “médicos de pés descalços”—da China de logo depois da Revolução—e do modelo que, no século passado, resolveu os principais problemas de saúde pública em Cuba! Temos muito a aprender com eles, mas não podemos ignorar a sociedade e o mundo em que vivemos.

Tem havido entre nós, históricamente, uma total perda de referencial, do ponto de vista do escalonamento de prioridades na destinação dos recursos e na formação médica. Até aqueles aparentes esforços de socialização e obrigação legal para acessibilidade a técnicas e medicamentos, têm sido utilizados de forma perversa e em benefício dos mais ricos. Tantos deles se matriculam em ambulatórios somente para receber “de graça” os medicamentos mais caros! Que isso tem um matiz perverso, revela-o a oferta que ouvimos, por parte do representante de um laboratório, de “assistência legal” para garantir as prescrições caríssimas do medicamento cujo uso tentava introduzir em nossos ambulatórios. As frentes de luta são muitas e há que convencer a Justiça do mau uso a que está submetida em muitos desses casos. A “Hidra” do privilégio de poucos tem infinitas cabeças. Elas aparecem onde menos se espera.

A grande questão que se coloca ao MS, parece-nos ser: como escalonar prioridades, de maneira a expandir a rede de assistência aos mais necessitados, sem deixar de desenvolver e incorporar novas tecnologias? De nossa parte, confessamos uma atitude de permanente desconfiança diante das “maravilhas” que são apregoadas pelos “magos da tecnologia”. Sabemos que funcionam mais como “areia nos olhos” das pessoas do que como ganhos verdadeiros. Todas deveriam ser submetidas a uma “quarentena” de avaliação, antes de sua incorporação às práticas do dia a dia. Muitos daqueles que as desenvolveram, diante da reticência dos administradores privados (e querendo ter um retorno rápido de seu investimento), tentam vender sua pseudotecnologia a órgãos públicos. Para isso, contam com a ajuda de uma imprensa ávida por “maravilhas e prodígios” na saúde e, frequentemente, com alguma “ajuda” de gente dos próprios ministérios, diga-se de passagem. Recebemos sempre com desconfiança as compras de aparelhos em grande número para qualquer novo projeto, como os computadores que o ME distribuiu em escolas sem quaisquer condições para colocá-los em uso (OGLOBO-06/11/11). Visam mais as “comissões por fora” do que o serviço. Seu destino é estragar e/ou ficar obsoleto. Que a CGU, e seu muito confiável Min. Hage, continuem fazendo o seu trabalho!

Muitos países europeus têm equacionado esse problema satisfatóriamente, embora persistam os privilégios na maioria deles¹. Na Suécia, que conhecemos bem, todas as unidades médicas de ponta e de peso são públicas. Os caprichos de que dipôem os mais ricos são poucos. A única diferença, no tratamento dado a membros do governo, reduz-se à privacidade que lhes é oferecida. Tudo naquele país é pensado a partir do interesse público e essa atitude é entranhada no povo: independe da tendência do governo do momento². É isso o que mais falta entre nós. Nosso povo ainda recebe como “doações” qualquer coisa que “cai da mesa” dos políticos.

Os acontecimentos envolvendo os desvios de recursos na Região Serrana do Rio deveriam ser suficientes para demonstrar os riscos da tão propalada municipalização. Infelizmente, entre nós, as melhoras têm vindo de cima para baixo. Para se ter uma idéia, na avaliação da organização “Transparência Internacional para a América“—baseada nas informações de empresários ligados ao comércio internacional—houve uma substancial queda na corrupção a nível Federal e entre empresas brasileiras (OGlobo, 02/11/11). Já em Estados e Municípios, encontraram realidade completamente diferente “…com casos absurdos de corrupção, principalmente para financiar campanhas políticas“. Uma amiga, que desenvolve trabalho de saúde mental em cidade próxima a Belém (PA), ouviu de um religioso espanhol (também muito envolvido com os programas de saúde):”Para a Alcadia não!Para Alcadia não!”. A frase, repetida quase como se fosse um mantra, referia-se à possibilidade de certos recursos serem enviados para a prefeitura do lugar. Já conhecia bem os escoadouros de verbas governamentais em que se transformaram muitas prefeituras. Esse é o maior entrave para que se resolvam nossos problemas de saúde.

 

¹Já no país do 15 trilhões de PIB—onde mais se cultiva a “mentira da tecnologia”—o desastre é completo. Para as pessoas menos favorecidas, a situação da saúde é bem pior do que entre nós (ver M. Moore, “$O$ Saúde”- “SICKO”).
 
²”O capitalismo é uma ovelha que precisa ser mantida bem tosquiada!” (Olof Palme). Somente um sueco poderia comparar o capitalismo a uma ovelha. Por aqui, as comparações são sempre com tubarões, lobos, etc. Quando alguém fizer um levantamento dos políticos mais importantes do séc. XX, especialmente por sua atuação em defesa dos direitos humanos, aquele sueco haverá de estar entre os primeiros. Enfrentou o “Apartheid”, as ditaduras da AL e outras. Foi assassinado e sua morte nunca foi esclarecida. Quando os aparelhos de Estado não desvendam crimes políticos, é sinal que os culpados são seus próprios membros. Se os “Proletários do Mundo” não se uniram, esses “Aparelhos” sim.
Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ