Temas e Controvérsias

DESMISTIFICANDO OS “MANUAIS DE DAR LIMITES” NA EDUCAÇÃO

("Quem não ouve a voz dos pais, está condenado a ouvir o tambor", ditado russo¹)

Depois da decadência em que entraram os livros de autoajuda, eis que uma nova “praga” apareceu no mercado de publicações destinadas à “orientação de condutas”: os manuais de “como dar limites” às crianças e adolescentes. Os dois tipos de livro têm origem no mesmo vício: a idéia de que existem condutas certas e erradas (no relacionamento cotidiano), independentemente das situações; da cultura em que se vive e das pessoas env olvidas no momento.

Mais do que inútil, esse ponto de partida é extremamente prejudicial, pois dificulta o desenvolvimento daquela que seria a única conduta que poderia ser verdadeiramente efetiva: a sondagem dos próprios sentimentos; a elevação da sintonia com eles e a valorização da intuição. Em cada sentimento, uma verdade interior! Por tudo isso, os livros de autoajuda deveriam ser denominados “de autoatrapalhação“, pois oferecem um único caminho como se fosse o certo, atrapalhando as pessoas na abertura do seu próprio.
Caminante, non hay camino,/Se hace el camino al andar…/E ao volver la vista atrás/Se ve la senda que nunca/Se ha de volver a pisar…“. (Antonio Machado, poeta sevilhano)

No caso do “dar limites”, a demonstração de sua impropriedade fica evidente quando fazemos a pergunta: existe uma “tábua de limites”, à maneira das tábuas da l ei de Moisés que geraram os dez mandamentos?² Quais serão, então, esses limites que alguns doutores, muito arrogantes e pretensiosos, andam apregoando por aí? Que os limites são necessários, parece óbvio a todo mundo. Quando os pais não conseguem fazer com que os filhos se identifiquem com os seus limites, a natureza e a sociedade terminam por lhes dar limites muito mais dramáticos e até trágicos.

Dar limites, então, é um ato de proteção e amor. Mas que limites serão esses? Respondemos: os nossos próprios limites. Quando reagimos à conduta de um filho, expressando uma verdade profunda e nossa, estamos dizendo: “V. ultrapassou o meu limite. Isso eu não aceito. Causou-me enorme mal estar. Comigo, e enquanto eu puder, farei tudo o que estiver a meu alcance para não d eixar que v. o faça de novo. (EU)Sinto, profundamente, que esse é o ato de amor de que v. está precisando nesse momento“. Fomos educados a ter vergonha de dizer EU QUERO e EU NÃO QUERO. Nossos filhos estão permanentemente a nos provocar, esperando por um ato firme de vontade: nosso e pelo qual assumamos a responsabilidade.

Quer isso dizer que devamos ser despóticos? Não! Essas atitudes não devem ser banalizadas. Reservemo-las às situações extremas. No cotidiano, não deve haver um código rígido de condutas, como são propostos nos tais “manuais de dar limites”. Uma mesma atitude que, em um momento, pode fazer rir, em outro pode provocar ira ou indignação. É essa sintonia fina (com os sentimentos dos outros) que nenhum manual nos pode ensinar. A “consulta” aos próprios sentimentos, entretanto, leva-nos a acertar, ou, pelo menos, ser originais nos erros e a não jogar a culpa em outros. Discutir, ouv ir opiniões, pode ser muito salutar, desde que as submetamos à nossa crítica e o resultado e a decisão sejam nossos. Há que lembrar, ainda, que os limites têm “mão dupla” e as crianças/adolescentes também nos dão limites. Uma das maiores dificuldades, na educação, é distinguir um capricho de uma necessidade vital. Os caprichos (e medos um tanto tolos), devemos ajudar a superar. Já as necessidades vitais, melhor respeitar! Quem há de nos ajudar nessa identificação, senão a boa e velha intuição?

Em sua dificuldade para entender um mundo um tanto caótico, as crianças estão sempre esperando por algumas verdades: uma referência. Só assim, é possível que elas desenvolvam um conjunto de valores que as irão proteger na nossa ausência. Afirmamos, sem medo de errar: o pior dos erros é sempre seguir algum manual. Nos manuais, nenhuma verdade! Até porque não existem verdades em geral, apenas as nossas verdades. Crianças não são aparelhos novos (celulares e outros) que chegam com “manual de instrução”. Por outro lado, quando alguém diz que trata os filhos de maneira igual: está mentindo, ou cometendo um grande erro. Há que encontrar a mais efetiva maneira de agir com cada filho em particular e, nisso, não há manual que nos ajude.

As novas gerações precisam sempre reconstruir o mundo (ou alguém acha que vivemos em um mundo muito justo?), mas segundo alguma referência das gerações anteriores. Sejamos uma espécie de membrana flexível, onde algo de novo esteja se gestando e não “caixas endurecidas”, às quais as crianças têm que se amoldar. Boa parte da revolta dos adolescentes talvez se deva às tentativas de que se enquadrem na mesma vida mesquinha de muitos adultos.
Virou moeda corrente, entre os mais velhos, dizer que o mundo em que viveram sua própria juventude era muito melhor. Alguns culpam até a grande revolução cultural dos anos 1960/70 pela perda de valores, etc. Essa talvez seja a maior demonstração de decadência que conhecemos. Até um mínimo de lógica falta ao raciocínio. Se o mundo que lhes legaram era melhor em relação ao que estão legando à nova geração, de quem pode ser a culpa? A rigor, não há culpas a cobrar de ninguém.
JJRousseau disse que o homem é bom, e a sociedade responsável por sua corrupção. Para A.Schopenhauer, ao contrário, o homem seria, por natureza, o “lobo do próprio homem”. Não somos nem uma coisa nem a outra, apenas os seres mais carentes de toda a natureza e, em consequência, cheios de necessidades, conhecidas e desconhecidas.

¹Ouvido por Dostoiévski em sua prisão siberiana, onde todas as atividades eram regidas por toques variados de um tambor (“Recordações da Casa dos Mortos”)
²São também “Mandamentos de Interdição”: “Não farás……”.< /em> Do seio do mesmo povo, brotaram outros Mandamentos, baseados em princípios gerais: solidariedade, fraternidade, igualdade, perdão, amor ao próximo…

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ