Temas e Controvérsias

EIXOS OU VETORES DE INVESTIGAÇÃO DIANÓSTICA?- II

(RESGATANDO O LEGADO DE LEME LOPES)-II

Quando soubemos do reconhecimento ao trabalho de JLL (“As Dimensões do Diagnóstico em Psiquiatria”) na Sexta Edição do Kaplan/Sadock, ficamos, nós mesmos, muito reconhecidos. Não é todo dia que esse reconhecimento vem do norte e nós, por demais necessitados dele, costumamos saboreá-lo com prazer. Logo, percebemos ter sido aquela referência muito mais do que uma simples curiosidade. Parecia haver ali uma inspiração para o diagnóstico multi-axial que fora recentemente apresentado pelo DSMIII. Estudando mais a fundo as duas publicações, tivemos a certeza de que o trabalho de JLL representava muito mais do que uma inspiração: era a “espinha dorsal” do diagnóstico multi-axial.

O DSMIII trouxe, sem dúvidas, contribuições muito marcantes como: a) o EIXO específico para a caracterização dos Transtornos da Personalidade; b) o EIXO que avalia a adaptação do paciente no último ano—antes do adoecimento—apontando para comparações futuras; c) a obrigatoriedade da observação da EVOLUÇÃO para estabelecimento do diagnóstico nosológico. Quando, porém, na sua Quarta Edição, o eixo do síndrome foi abortado, passando a ser usado diretamente para o registro inicial dos transtornos, sua estrutura e função primordial desabaram e aquele manual passou a servir apenas para fins protocolares e preenchimento de formulários. Até mesmo a sua inspiração maior—a seleção de amostras mais homogêneas para as pesquisas—foi, certamente, prejudicada. Basta um estudo da finalidade dos 3 últimos EIXOS, para perceber o quanto o DSM IV¹ representou quase uma traição ao DSMIII:

Leme lopes
Leme Lopes

1- O EIXO III (fatores orgânicos) somente pode ser válido para o episódio atual (por exemplo: uma síndrome maníaca disparada, em um paciente Bipolar, pelo uso de excitantes corticais) e não para o Transtorno em si. A mera existência desse eixo, confirma a finalidade sindrômica do EIXO I.

2- O mesmo se pode dizer para o EIXO IV, pois os fatores ambientais somente podem interessar por sua relação com o episódio atual. A não ser que consideremos os “stressores” desempenhando papel causal específico e principal, o que seria um contra-senso na maioria dos casos.

3- Quanto ao EIXO V, é evidente que o nível de adaptação a ser comparado é o do ano anterior ao episódio atual (síndrome), e não para o transtorno em si. Só assim, seria útil para avaliar reabilitação/degradação progressivas na adaptação de um paciente de longa data.

A primeira referência às várias e possíveis dimensões do diagnóstico em psiquiatria foi feita por E. Kretschmer (1888-1964), quando, discutindo o papel da constituiçãocaráter e fatores orgânicos na “demência precoce”, afirmou: “Os dois sistemas diagnósticos não se encontram um ao lado do outro, mas um sobre o outro…não se trata de um diagnóstico misto, mas estruturado em camadas” (1919, JLL, obra citada). Ao lado disso, antecipou idéias que hoje servem de referência para muitos: “…em todas as psicoses, descobrir o fundamento cerebral da reação psicológica e, em toda desordem mental orgânica, analisar também a origem psicológica de seus elementos representativos“. Em 1954, JLL retomou o tema e o levou às suas penúltimas consequências. Há muito ainda a reconhecer na importância de seu trabalho:

Talvez por estar um tanto preso à idéia de diagnóstico em camadas, JLL aplicou a expressão por demais estática: PLANOS DIAGNÓSTICOS. Sua substituição por EIXOS (pelo DSMIII) não deixou de ser um avanço, embora, por definição, eixos sejam estruturas rígidas e fixas. Bem melhor parece ser a expressão “VETORES DIAGNÓSTICOS”, uma vez que se referem a caminhos predominantes de investigação momentânea, de maneira a avaliar o peso e a importância de uma linha de investigação específica em um caso determinado. Damos exemplos:

1-Transtorno “Borderline” da Personalidade– nesse caso, o EIXO II (ou vetor), seria o maior e de maior peso. Eventualmente, porém, poderiam acontecer episódios de desestruturação mental suficientes para a caracterização de sinais e sintomas—na esfera do pensamento e senso-percepção—implicando um peso maior e momentâneo para o EIXO I (ou vetor). A frequente utilização de substâncias psicoativas nesses casos, implicaria também a atribuição de um peso considerável ao EIXO III (ou vetor) em alguns momentos. Caso apresentasse dependência, propriamente dita, à substância, esse EIXO III passaria a ser o primordial, podendo ser associado a síndromes específicas no EIXO I. Considerando as múltiplas condutas anti-sociais, muito frequentes nesses casos, um encarceramento recente implicaria a atribuição de um peso maior, em um momento, ao EIXO IV (ou vetor).

2-Psicose Reativa Breve– se há uma psicose, a predominância momentânea deve ser para a aplicação do EIXO I (ou vetor). A boa caracterização de ocorrências ambientais (não válido para uso de substâncias, pois seriam de natureza orgânica), levaria a uma valorização maior do EIXO IV (ou vetor). Tudo isso, entretanto, ficaria na dependência de uma resposta relativamente rápida à terapêutica, além de uma evolução para retorno (em cerca de duas semanas) ao mesmo nível de adaptação original (EIXO V). Caso isso não ocorresse, todo o raciocínio em relação ao caso teria que ser reformulado. O fator ambiental passaria, então, a ser considerado DESENCADEANTE ou meramente COINCIDENTE (não CAUSAL).

Como se pode ver, a idéia de VETOR permite uma flexibilidade para variações quantitativas temporais, além de fornecer instrumentos flexíveis para o diagnóstico em um determinado momento. Além disso, os modelos baseados em CAMADASPLANOS ou EIXOS implicam um esforço direcionado ao objeto de estudos, como se eles estivessem efetivamente lá (uma certa reificação do processo), apenas esperando pela nossa descoberta. É uma possibilidade. Considerando, porém, a fragilidade dos nossos conhecimentos acerca, especialmente, dos possíveis fatores etiológicos para as condições estudadas, consideramos muito melhor enfatizar o PROCESSO diagnóstico (vetores), até porque, com muita frequência, teremos que rever as hipóteses, desde o início.

Tabela_MarcioAmaral

Quem sabe, um dia, não conseguiremos chegar a essas “camadas” ou coisa parecida? Essa não seria, entretanto a principal preocupação daqueles envolvidos na feitura de uma boa hipótese diagnóstica, mas sim dos estudiosos da neurofisiologia, fisopatologia e até dos que acreditam em determinantes sociais. É possível, ainda, que algumas descobertas propiciem a elaboração de classificações baseadas em fisiopatologia ou fatores causais propriamente ditos. Por ora, entretanto, preferimos tratar nossa nosologia como um “constructo intelectual” de grande utilidade e correspondência com os fenômenos que classificamos como doenças mentais. Àqueles que consideram essas discussões de pouca relevância, diríamos que “perderam o pé” da boa clínica há muito tempo, sem o reparar..

¹Temos ouvido muitas vozes de peso se levantando contra o sistema DSM, em geral. Não vimos, até hoje, uma demonstração de como, a partir do DSMIV, alguns valores fundamentais se perderam. Se a crítica visa os excessos nos esforços de operacionalização, o preenchimento de “check lists” e outras procedimentos que violentam a boa clínica, estamos com ela. Há, entretanto, no modelo diagnóstico proposto por JLL, assim como no DSMIII valores que vieram para ficar. Tentar abolir seus princípios seria agir como a ama desastrada que, depois de lavar cuidadosamente o bebê na bacia, atirou-o fora junto com a água suja.

²Em conferência muito concorrida e apreciada (Primeiro Simpósio Internacional, IPUB-UFRJ, 2011), Cláudio Banzato defendeu o uso generalizado do termo SÍNDROME, em vez de TRANSTORNO. Partia de um raciocínio muito aprecido com o que expomos aqui. Gostamos demais também do conceito de SÍNDROME e de seu uso. Pensamos nele, entretanto como uma espécie de “irmão siames” do conceito de TRANSTORNO ou DOENÇA, ainda que hipotéticos. Abandoná-los funcionaria como se não pensássemos na possibilidade de sua futura caracterização com: etilogia, fisiopatologia, herança, epidemiologia, terapêutica específica, assim por diante. Desconsiderando essa possibilidade, vagamos em um.
Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ