Temas e Controvérsias

ESPECTRO OBSESSIVO COMPULSIVO: ESPECTRO OU APENAS UM “FRANKENSTEIN”?

Em pouco mais de uma década, a prevalência do TOC “saltou” de 0,05% (5/10000) para até 10% da população. Por mais que acreditemos nos avanços da ciência, e na identificação de casos que, até então, poderiam estar passando desapercebidos, um mudança dessa ordem é de causar estranheza. Como todos sabem, esse “salto” não foi propriamente de natureza epidemiológica, mas decorreu da criação do assim chamado “espectro obsessivo-compulsivo” (Hollander,1995). O que vamos tentar demonstrar, é que a criação do tal espectro correspondeu a uma deformação do próprio conceito de espectro.

O referido conceito implica a observação de que algo que considerávamos único, era, em verdade, resultado de uma composição múltipla. A passagem da luz branca por um prisma (espectro da luz branca) foi a sua origem e deveria continuar servindo de inspiração para sua aplicação. Assim, quando “passamos” os transtornos do humor “através de” um prisma imaginário, percebemos, “do outro lado”, uma enorme subdivisão: desde os mais graves bipolares até os distímicos (e outros mais, dependendo dos critérios). Com as esquizofrenias, obtivemos resultados parecidos. Quanta utilidade decorreu da noção de espectro para a nossa especialidade! Se, por um lado, afirmava características unificadoras comuns, por outro, deixava grande margem para o estudo de peculiaridades.

Não foi esse o princípio que norteou o “espectro” aqui estudado. Muito pelo contrário: a partir de algumas características periféricas ao fenômeno do TOC, alguns autores começaram a tentar “atrair” para a sua órbita vários dos transtornos que não estavam muito “acomodados” em outros ítens das classificações em uso. Lançando mão do critério: TENDÊNCIA À REPETIÇÃO, “atraíram”: síndrome de Tourette, transtornos dos impulsos, perversões, e alguns outros. Um olhar mais profundo às características mais nucleares dessas condições, entretanto, revela  tantas diferenças fundamentais em relação aos paciente que sofrem de TOC, que o tal espectro, definitivamente, não se sustenta!

Pacientes com Tourette são impulsivos e não teem muitos cuidados com outras pessoas (contrariamente aos que sofrem de TOC) agredindo-as verbalmente sem qualquer cerimônia. Pacientes com transt. dos impulsos buscam o prazer (imediato, pelo menos) na realização dos mesmos, enquanto os com TOC apenas procuram por al ívio na repetição de seus rituais. As fantasias perversas dos obsessivos, contrariamente ao que ocorre nas perversões, tendem a não se realizar, sendo “substituídas” por rituais compulsivos e simbólicos.

Levado ao extremo, e se o critério REPETIÇÃO fosse o principal, as estereotipias deveriam ser as manifestações máximas do TOC. Sua definição, porém, implica perda de finalidade e de conteúdo simbólico na repetição de certos atos, contrariamente à compulsão, que é associada a pensamentos catastróficos e mágicos, de maneira a “controlar” o meio (mas também as próprias fantasias ou representações).

Em verdade, a TENDÊNCIA À REPETIÇÃO é uma característica primordial da vida em geral, uma vez que, até para situações novas, aplicamos (pelo menos no início) velhos meios, recursos e instrumentos. A questão que se coloca é se essa repetição se dão em função da vida (aprendizado, desenvolvimento de habilidades, etc.) ou por uma certa “paralisação” da vida, como nos casos citados.

Somente para efeito de raciocínio, e se há aqui algum espaço para um olhar espectral, ele poderia partir do critério: meios utilizados para lidar com os impulsos (na esfera desadaptativa dos transtornos). Do “outro lado do prisma”, talvez pudéssemos ver: o TOC, as perversões, a perda do controle dos impulsos, alguns transtornos da personalidade, os transtornos alimentares, e tantos outros.

Por fim, tem se tornado uma citação frequente (entre pesquisadores desse “espectro”) a expressão: “cortar a natureza nas suas articulações” (Kendell, sobre classificações). Há nisso a expressão de um olhar “anatômico” para a vida, além da pretensão de aprisionar e “tomar posse” da natureza com nossos instrumentos.

Como bem o demonstraram Leibniz e Darwin,  a natureza simplesmente não tem “articulações”: tudo são transições. A vida não se dá através de mecanismos separados e estanques. Sempre que os cientistas teem essa ilusão de controle, terminam por criar “Frankensteins“, como parece ser o caso do tal “Espectro” ao qual talvez mais se aplique o outro sentido do termo: fantasma.

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ