Temas e Controvérsias

ESQUIZOFRENIA E LINGUAGEM VERBAL-II (MODELO ANIMAL? SÓ “…NO TEMPO EM QUE OS ANIMAIS FALAVAM”!)

Seria exaustivo, e um tanto redundante, listar os sinais e sintomas associados diretamente à linguagem propriamente dita nos pacientes esquizofrênicos. Por isso, vamos tentar demonstrar que, para esses pacientes, mesmo os sintomas classificados como provenientes do mau funcionamento de outras funções psíquicas, estão também associados à linguagem, ou melhor dizendo, a um colapso da boa relação entre as diversas linguagens de que os seres humanos dispôem, além da verbal: corporal (mímica e gestual), da prosódia e entonação, principalmente.

O primeiro problema conceitual em que esbarramos, é a tendência a se tratar a fala (linguagem verbal) como a linguagem em si. Há que se fazer essa distinção bem clara, pois FALA prende-se especificamente à emissão sonora de fonemas, cuja sequência articulada caracteriza uma palavra. Já LINGUAGENS, há muitas, conhecidas e ainda por conhecer. Só para que se tenha uma idéia, os livros falam de dois centros da fala (de Broca e de Wernicke), quando, em verdade, existe apenas um. A área de Wernicke é um centro de processamento das linguagens em geral (não apenas da fala) e é no seu estudo que se devem procurar por alguns fenômenos nucleares da SQZ. Essa mistura de conceitos é um grave erro a ser superado para bem da evolução do conhecimento.

Que a área de Wernicke é um centro de processamento das linguagens—em geral, e não da fala especificamente—foi demonstrado durante experimento no qual é apresentado um vídeo falado na língua do observador. Verifica-se, então, nessa pessoa, intensa ativação da área assinalada. A exposição de um outro vídeo, em uma língua completamente desconhecida, porém, não é acompanhada dessa ativação. Quando, entretanto, em um terceiro vídeo, alguém começa a—como, muito provavelmente se deu na história da humanidade, antes do desenvolvimento pleno da fala—tentar contar uma história através de gestos, de novo, a área de Wernick sofre uma grande ativação. Conclusão muito simples: não é à fala, especificamente, que aquela área é dedicada, mas à decodificação de sinais que implicam uma informação (à esquerda, uma vez que a área contra-lateral é voltada à prosódia e express? ?o dos afetos durante a comunicação. Toda a nossa tese vai se basear na existência de uma espécie de conflito entre essas estruturas e suas funções).

Praticamente todos os livros de psicopatologia confundem os conceitos de FALA e LINGUAGEM. Talvez precisemos estabelecer, entre nós mesmos, uma multa—como a aplicada por Pavlov entre seus discípulos—sempre que alguém “cair, mais uma vez, em confusão”. A melhor distinção por nós encontrada, entre os dois conceitos, é a apresentada em “Neuroaudiologia e Linguagem” (“Neuropsicologia- Teoria e Prática”, p.136):  “…Linguagem…é a capacidade de transformar idéias em sinais que possibilitem a comunicação com o outro…A linguagem) faz com que surjam novas combinações de idéias e organiza a experência sensorial. Por meio dela, o indivíduo expressa sua identidade, seus pensamentos, sentimentos e expectativas; dando, ainda, forma a eventos nos cérebros de outras pessoas”. Eis uma definição irreprochável, e, a um só tempo, abrangente e bem de limitada.

O conceito de DOMINÂNCIA entre hemisférios foi abandonado. Muito melhor é a idéia da ESPECIALIZAÇÃO: subdivisão de “tarefas” e adoção de papéis complementares entre os hemisférios trabalhando em conjunto. Para praticamente todas as funções, esse papel de trabalho em conjunto (R.Lent, “Cem Bilhões de Neurônios”), resulta em maior harmonia na execução. Em relação à LINGUAGEM VERBAL (e, muito posteriormente, também à escrita), entretanto, tudo passou a ser muito diferente.
A linguagem verbal é, não apenas a mais recente, como também a mais facilmentefalseável” (Nietzsche).
A regra da vida social é o conflito entre a linguagem verbal e as demais, que expressam as verdades mais profundas de todos nós. Tratamos a VERDADE como se fosse a regra e a MENTIRA como uma exceção. A verdade é o oposto: movemo-nos (ou somos paralisados) por necessida des que desconhecemos e forjamos motivos a posteriori para “justificar” nossas condutas. De vez em quando, uma verdade mais profunda nos atinge e se impôe. Por isso, criamos a expressão: “deixar-se trair“? “Deixamos trair” verdades, através de: expressão corporal, ato falho, mímica, balbuceio, e não apenas quando temos a intenção consciente de mentir. É NESSE PRINCÍPIO, ALIÁS, QUE SE BASEIA TODA A PSICOLOGIA COM ALGUMA INFLUÊNCIA DE FREUD/NIETZSCHE. Se há uma área em desenvolvimento nas investigações policiais, é o esforço para detecção de mentiras a partir da expressão corporal e mímica.

Não conseguimos encontrar outra função cujas estruturas funcionem, via de regra, em conflito e até oposição, como as estruturas contra-laterais da área de Wernicke. Dessa constatação, entretanto, até alguma hipótese que a associe à SQZ, entretanto, vai uma distância enorme. Não temos qualquer veleidade de apresentar alguma. Podemos dizer, contudo, que há 2 modelos possíveis a se seguir para explicar os achados alcançados e ainda por alcançar nessa área:

1-O cérebro funcionando como uma “máquina” que, por algum defeito de origem (e independentemente das experiências de um indivíduo), teria um certo tempo previsto de uso, findo o qual, entraria em colapso. Muito pouca gente pensa, hoje, nesses termos.

2-O cérebro apresentando alguma insuficiência que, dependendo das experiências de um indivíduo, expressar-se-ia, com maior ou menor gravidade e mais ou menos precocemente. Considerar que apenas certas experiências, ambientais e de relação, seriam suficientes para provocar transtornos mentais específicos, é um anacronismo que não merece ser discutido.
A questão que se colocaria, então, passaria a ser de que maneira, e mediante que mecanismos, aquele choque entre linguagens poderia influenciar, nos SQZ, a deterioração de algumas estruturas responsáveis por: tomada de iniciativas, interação social e capacidade de compreensão compartilhável dos acontecimentos.

DE COMO O COLAPSO DE UMA ESTRUTURA FRENADORA LEVA À LIBERAÇÃO DE OUTRAS

Podemos usar, nesse caso, o mesmo modelo que é utilizado para explicar a liberação de condutas, não aceitas socialmente, em pacientes que sofreram uma deterioração nas regiões mais diferenciadas e evoluídas dos lobos prefrontais. Como já dissemos, a linguagem verbal costuma exercer alguma inibição na expressão de outras formas de expressão linguística, não verbais. Vivemos em um mundo que respeita, antes de tudo, protocolos, ainda que para prejuízo das pessoas. Dessa forma, o colapso da linguagem verbal “liberaria” outras formas de linguagem, que atingiriam o paroxismo nos fenômenos psicóticos mais extremados: TUDO À VOLTA PASSA A “COMUNICAR” E INDUZIR AS MAIS ABSURDAS CONCLUSÕES. O acaso simplemente desaparece nessa situações. Tudo ganha um significado novo (uma linguagem), autoreferente e, na maior parte das vezes, ameaçador.

Em uma alucinação funcional (em verdade, em função de…), é atribuído a algum som continuado do mundo inorgânico, mais do que uma linguagem: o verbo.
Durante as alucinações verdadeiras, a linguagem do próprio pensamento (a voz interior), não mais seria compreendida e falsamente percebida como vinda do exterior.
A  perda dos limites do EU também implica “comunicações”, a partir de signos só “compreendidos” pelos próprios pacientes.
desagregação do pensamento resultaria dessa intromissão e atribuição de significados novos a múltiplos estímulos do meio, humanos ou não.

Nas reações em eco (cursando também com perda de limites do EU) há uma total, ainda que momentânea, perda de todas as linguagens, pois elas são formas de comunicação de um indivíduo.
O autismo seria também o resultado desse colapso da linguagem verbal, resultando em total não compartilhamento de experiências.

Só quem não conhece bem a riqueza das manifestações esquizofreniformes pode considerar sua reprodução, ainda que palidamente, em algum “modelo animal”. Pesquisadores de outras áreas são muito bem vindos, mas se puderem se inspirar em D. Ivone Lara (“Alguém me Avisou”), talvez sejam melhor sucedidos:

“Eu vim de lá…Eu vim de lá pequenininho/ Alguém me avisou prá pisar nesse chão devagarinho…”

Aos nossos colegas, ávidos por reduzir os transtornos psiquiátricos a “causas orgânicas” específicas, perguntamos se já se deram conta de que agem como “Cavalos de Tróia”, diluindo nossa especialidade em uma muito árida “neuropsiquiatria”. A psiquiatria é uma árvore cada vez mais frondosa e resistente a todo tipo de erva daninha.

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ