Temas e Controvérsias

F. GULLAR: E O POLEMISTA SE CALOU!

(O QUE TEM GULLAR A NOS ENSINAR?)
Ferreira Gullar é um grande polemista. Quem o pode negar?¹ Por isso mesmo, seu silêncio diante da polêmica em torno do livro do MEC—no qual é feita a defesa da língua falada como uma entidade autônoma a ser respeitada—soou mal aos ouvidos daqueles que gostariam de ter ouvido sua voz.
Depois de calar sobre tema tão visceralmente ligado à sua área de conhecimento, chega a ser curioso que esteja se envolvendo em polêmicas sobre temas que não conhece bem, como aquilo que ficou conhecido por Reforma Psiquiátrica. Tudo o que ele tem a dizer, a respeito das intervenções em saúde mental, limita-se à sua longa história como parente de paciente e, nesse sentido, deve se resumir a um DEPOIMENTO. Considerando, entretanto, a agudeza do seu olhar, um DEPOIMENTO seu há de ser sempre rico e interessante, caso se limite a discutir:
1-Os fracassos da clínica psiquiátrica, nas últimas décadas, para resolver certos casos muito graves.
2-Os preconceitos dessa mesma psiquiatria contra os familiares de pacientes.
3- As mistificações de alguns psiquiatras e psicólogos, acerca das causas da doença mental, e outros temas parecidos.
Qualquer coisa além disso, especialmente em conferência proferida para psiquiatras, há de soar como uma humilhação para todos nós. Tudo o que, por acaso, disser acerca da “Reforma”, por exemplo, seria “por ouvir dizer”, ou então “discurso encomendado”, até porque, na assistência a seu filho, ele parece ter recorrido muito mais à iniciativa privada do que ao SUS.
Suas críticas, aliás, parecem muito mais dirigidas aos excessos nas tentativas de compreensão sobre o fenômeno da psicose, a partir da influência psicanalítica em seus diversos matizes². Por alguma razão, ele teria feito uma associação, muito artificial, entre a “Reforma” e a Psicanálise. Para quem não sabe, há muitos psicanalistas que atacam as mudanças ocorridas na assistência pública aos pacientes psiquiátricos e, por outro lado, há também muitos bons clínicos (dos que utilizam medicamentos no tratamento de seus pacientes) que apreciam as mudanças humanizadoras da intervenção do poder público naquela assistência.

Pensando bem, Gullar não anda muito bem em termos de polêmica. Na última em que se envolveu, cometeu algumas injustiças lamentáveis! Suas acusações de plágio a O. Montenegro, por conta de uma semelhança de inspiração temática, soaram como uma traição à sua própria história. Vejamos:
“Uma parte de mim/é todo mundo/outra parte é ninguém:/fundo sem fundo”(“Traduzir-se” F.Gullar)

“Porque metade de mim é o que eu grito/Mas a outra metade é silêncio…”(O.Montenegro)

Como o poeta sabe melhor do que ninguém (e até já escreveu sobre isso) a poesia é, antes de tudo, a palavra (Mallarmée) e não o tema ou idéia em si. O “ser/estar dividido” é quase uma condição para a poesia e esse tema é muito recorrente em poesia.

Diante dessa polêmica, fiquei pensando em como M. Bandeira reagiria à letra do samba de M. da Vila, se a comparasse ao seu poema”Temas e Voltas”:

“Sonhei ter sonhado/Que tinha sonhado/Em sonho lembrei-me/De um sonho passado/O de ter sonhado/Que estava sonhando/Sonhei ter sonhado/Ter sonhado o quê?/Que havia sonhado/Estar com você…”. (Bandeira)

“Sonhei/Que estava sonhando um sonho sonhado/O sonho de um sonho/ Magnetizado…/Sonho meu/Eu sonhava que sonhava…” (M. da Vila)

Como se pode ver, há muito mais semelhanças, e não apenas de inspiração temática, mas também no uso das palavras.
Não resisto a imaginar como reagiria o “bardo de Recife” ao ouvir esses versos. Certamente, com a generosidade que lhe era peculiar, e sem se sentir ameaçado, ficaria muito feliz em ver como o seu poema teria inspirado tanta poesia e uma bela canção. Quem sabe não diria, ele que adorava música: “AH! Se eu tivesse essa inspiração musical!”. Certamente, além disso, consideraria a possibilidade de apenas uma coincidência. Quem é dono da inspiração poética?

Pensando bem, talvez tenha sido melhor que Gullar tivesse se calado na polêmica sobre o livro do MEC. Quem sabe não cometeria mais uma traição à sua própria história para agradar a seus novos amigos? De qualquer maneira, de um intelectual, que já escreveu: “Falar é sempre improvisar…a frase não está pronta…ela é apenas uma das possibilidades de formular do falante…” (“Palavras, palavras”), esperava-se um pronunciamento quanto aos riscos de querer aprisionar algo (a linguagem falada) que precisa ser sempre….improvisado.

Já Bandeira, até postumamente, norteou o caminho para resolver a polêmica: o que passa pelo respeito às manifestações populares.

“…A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros/ Vinha da boca do povo na língua errada do povo/Língua certa do povo/Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil…” (“Evocação do Recife”)
¹Mais do que apenas polemista, ele foi talvez a maior referência de uma esquerda visceralmente democrática que emergiu nos anos 1970/80, em sua resistência ao “stalinismo” e àqueles que descambaram para o terrorismo. Gullar foi uma prova viva da possibilidade de caminhos mais abrangentes na defesa da boa convivência entre a democracia e os interesses sociais.

¹De relações causais em medicina, aliás, ele não entende muito bem. Em uma pequena crônica, onde relata suas agruras com uma gastrite (e a associação sempre feita com a ansiedade) diz: “…descobriu-se que a CAUSA da gastrite é uma bactéria…tomei os medicamentos, e em um mês estava curado…Bendita medicina!”. Que visão! Parece haver ali uma advertência: “Deixem a subjetividade com os poetas! Recolham-se à objetividade dos remédios!”. Ele, que foi um dos próceres da poesia concreta, está lançando a “medicina concreta”. Como elemento poético, é interessante. Para a medicina, um desastre. Ademais, quem dentre nós ainda fala em causas com essa estreiteza de raciocínio?