Temas e Controvérsias

Glossário de expressões e termos: Controversos, Inapropriados, ou mesmo Errados, de uso corrente em Psiquiatria

INTRODUÇÃO – na linguagem popular e corrente, o uso consagra aquilo que, inicialmente, pode ter sido considerado um erro pelos gramáticos e demais versados no vernáculo. Foram os “erros” no uso do latim que criaram diversas das línguas faladas hoje. No que se refere ao uso de termos e expressões entre pessoas ligadas à produção de conhecimento, porém, é esperado que se proceda a um apuro permanente na linguagem, de maneira a que ela cumpra a sua função com precisão e elegância. Afinal, não são as palavras e os conceitos o nosso maior patrimômio? Sem eles, como elaborar teorias?

Quando a mente humana aborda um problema qualquer com o intuito do conhecimento e domínio, é seguida, quase que invariavelmente, uma sequência lógica que implica: 1- fenômeno (observação e descrição preliminar e não sistemática), 2-conceito (esforço de redução às palavras daquilo que foi observado e descrito) e, por fim; 3- denominação (fornecendo indicação, o mais precisa possível, daquilo que foi observado, descrito e conceituado). Essa foi a razão que levou ao abandono e condenação, por exemplo, do uso da expressão Psicose Maníaco Depressiva, uma vez que a condição não necessariamente cursava com psicose nem implicava mania e depressão. Aquilo que vamos tentar demonstrar, é a existência de inúmeras expressões, que utilizamos correntemente sem reparar na sua impropriedade, algumas até capazes de induzir a erros. No extremo oposto, encontra-se o conceito de Psicose Reativa Breve, uma vez que, poucas vezes, uma denominação espelhou tão bem aquilo que buscou denominar: um quadro psicótico, decorrente de acontecimentos do ambiente e das relações humanas, por isso reativa (não inclui uso de substâncias, por exemplo) e de curta duração, por isso breve.

Aos que considerarem pretensiosa ou arrogante a discussão de alguns dos termos propostos por autores clássicos, respondemos que o respeito não deve implicar submissão e que a discussão da sua contribuição é uma forma de os homenagear. Não é uma demonstração de muito rigor, expor, lado a lado, conceitos que se contradizem sem proceder à sua crítica. Quando nos valemos da palavra CONTROVÉRSIA, foi para assinalar que sempre pode haver um melhor juízo a respeito dos termos aqui discutidos. Somente o bom exercício da crítica pode arejar qualquer forma de conhecimento E SABER.

1-TRANSTORNO DISMÓRFICO DO CORPO– muito a propósito, essa expressão pode ser considerada um “aleijão”. Primeiro, uma redundância: se é dismórfico (em relação a um ser humano) só poderia ser do corpo. Segundo, um erro mesmo: o seu conceito implica a inexistência (ou uma supervalorização) de algo dismórfico (“no corpo”). O termo utilizado anteriormente era muito melhor: DISMORFOFOBIA, mas, ao que tudo indica, os pesquisadores dos transtornos de ansiedade lutaram pela exclusividade do uso do termo fobia. Como se pode ver, seria impossível encontrar uma solução pior. 

2- RISOS IMOTIVADOS– falar de algo imotivado é, em si e por definição, algo absolutamente errado. Qualquer acontecimento faz parte de alguma cadeia de causas e efeitos. Aquilo que interessa, nesse caso, é a falta contextualização (no sentido das relações humanas) de uma expressão dos afetos. Muito melhor é a denominação, já anteriormente proposta: riso descontextualizado, uma vez que, espera-se, o riso seja compartilhado (ainda que na lembrança ou representação) com outras pessoas. Talvez seja essa a razão pela qual estranhamos um riso solitário, mas não um choro solitário. 

3-FUGA DE IDÉIAS– a melhor maneira de avaliar se uma denominação é adequada costuma ser indagar a quem nunca tomou contato com o assunto o que essa pessoa “entende por…”. Quando fazemos isso em relação à fuga de idéias, invariavelmente, ouvimos a resposta “as idéias fogem da cabeça” e, convenhamos, não é isso o que ocorre nesse fenômeno. Idéias “fugindo” da cabeça, fazem pensar muito mais em fenômenos frequentes nas esquizofrenias como: roubo, subtração ou bloqueio do pensamento. O que verdadeiramente ocorre nas assim chamadas “fugas de idéias” é o escape ou fuga (por parte de um sujeito) da idéia principal, ou seja, o paciente abandona a idéia principal em função de uma associação imediata qualquer. Há que mehor denominar o fenômeno, como por exemplo: escape ou fuga da idéia principal. Se não soa muito bem, pelo menos diz o que o fenômeno é. 

4-ACELERAÇÃO DO CURSO DO PENSAMENTO– Talvez exista aqui um excesso de preciosismo, mas a transposição do conceito de aceleração do mundo físico para o funcionamento da mente humana não nos pareceu muito adequada. Aceleração implica elevação progressiva da velocidade e, se fosse assim, o paciente tenderia a aumentar progressivamente a velocidade de sua fala (espelhando o que estaria se passando no pensamento, é claro) e não é isso o que ocorre. O fenômeno deve ser chamado apenas: velocidade aumentada no curso do pensamento. É verdade que em “pensamento acelerado” não há inadequação. 

5- PERCEPÇÃO DELIRANTE– considerando que PERCEPÇÃO implica a senso-percepção e DELIRANTE refere-se ao pensamento (mais particularmente ao juízo) esta também seria, em si, uma denominação no mínimo estranha. O que diriam todos se falássemos de um “IMPULSO HIPERTÍMICO” ou um “AFETO HIPERBÚLICO”? Seria estranho, não? O que ocorreu foi que os autores responsáveis pelo desenvolvimento do conceito e pela sua denominação, desconsideraram a divisão proposta por WUNDT do processo da tomada de consciência em relação aos objetos do mundo exterior: 1-SENSAÇÃO (intensidade e cores, no caso da visão); 2- PERCEPÇÃO (organização de formas) e 3- APERCEPÇÃO (atribuição de significado ao percebido). Considerando que, no caso, os dois primeiros momentos acontecem sem qualquer alteração patológica, o que ocorre, na verdade, é uma APERCEPÇÃO DELIRANTE (Amaral, JBP-1-2009). Foram descritas até mesmo AGNOSIAS APERCEPTIVAS o que confirma a importância do conceito. 

6- AFASIA “SENSORIAL” OU “FLUENTE”– acostumados à feitura da oposição: motor versus sensorial, e tendo sido caracterizadas as afasias motoras (BROCA), houve a tendência a denominar “sensorial” a que foi descoberta algum tempo depois (Wernicke). Como, entretanto, sua origem está na incapacidade de bem compreender o que é ouvido ou falado não há ali nada de sensorial, propriamente dito. Considerando, por outro lado, que, na afasia motora, há uma incapacidade para a fala enquanto na outra alguma fala existe (mas é, na maioria das vezes, incompreensível) uma outra comparação desastrosa levou à da expressão “fluente” para sua denominação o que representou uma aberração no sentido do vernáculo corrente. Bem melhor é a sugestão de afasia de compreensão ou afasia agnósica. 

7- HIPERBULIA NA MANIA (Yager and Gitlin- Kaplan-Sadock-2005)- esse é um erro repetido por vários autores e que repousa na confusão conceitual entre VONTADE e DESEJO (I. KANT, “Fundamentação da Metafísica dos Costumes)”, uma vez que o desejo é apenas a primeira condição para que se desencadeie uma espécie de “arco da vontade” do qual constam quatro fases: 1-desejo (ou intenção), 2-processo de deliberação (ou julgamento), 3- tomada de decisão e 4- execução propriamente dita. No caso das manias e dos “borderlines” o que ocorre, em geral, é a passagem direta da primeira à última fase em uma “linha reta” (pensando naquele “arco”) quase sempre com consequências desastrosas (Amaral, JBP-4-2009). A própria linguagem popular já resolveu esse problema conceitual há muito tempo, quando cunhou a expressão “ter força de vontade” associada à capacidade de vencer ou freiar as próprias inclinações. 

8- DISTÚRBIOS QUALITATIVOS DA VONTADE– costumam-se classificar dessa maneira as perversões em geral, sugerindo que alguns seres humanos teriam sido criados a partir de uma “matéria” ou espírito qualitativamente diferentes em relação aos demais. Isso é, conceitualmente e moralmente, inconcebível, além de reforçar a tendência à transformação em “bestas-feras” das pessoas que cometeram certos crimes associados principalmente à perversão sexual. Temos a impressão de que, nesse caso, o esforço em separar transtornos qualitativos de quantitativos não ajuda em nada, além de incorrer em problemas conceituais insolúveis e de consequências perigosas.

9- TRANSTORNOS QUANTITATIVOS DOS AFETOS– nesse ítem, as dificuldades prendem-se a outro problema, uma vez que consideramos essa classificação útil e adequada. Há, por exemplo, quase invariavelmente, uma diminuição na capacidade de expressar afetos em geral por parte dos esquizofrênicos residuais. Sempre que se fala de variação quantitativa, entretanto, o primeiro requisito que se exige é o estabelecimento de uma faixa normal de variação como termo de comparação. Nenhum dos livros que conhecemos, entretanto, procedeu a esse cuidado. Propusemos como limite superior de uma possível faixa de normalidade (a partir do qual haveria elevação patológica na expressão dos afetos) os TRANSTORNOS HISTRIÔNICOS e para um limite inferior, os ESQUIZÓIDES, uma vez que essas duas condições não são consideradas doenças propriamente ditas, mas transtornos da personalidade.

10-ALUCINAÇÕES “NEGATIVAS”– aqui a denominação é tão ruim que a maioria dos autores se vale de aspas para sua reprodução. Para se ter uma idéia dos riscos que podem decorrer de uma denominação equivocada qualquer, vimos, recentemente, um texto sobre alucinações que se iniciava assim: “As alucinações são classificadas em positivas e negativas. As positivas….”. Quanto desserviço ao bom estudo de psicopatologia! Há, além disso, uma tendência generalizada ao mau uso do termo ALUCINAÇÃO, pois ele deveria ser reservado àquelas falsas percepções que teem poder de convencimento mesmo sem a presença de um objeto. Falar de “alucinações oníricas” como faz Allonso-Fernadez, por exemplo, implica uma vulgarização do termo inaceitável. O fenômeno do subtítulo é de natureza psicogênica e muito raro. Implica um estreitamento no campo perceptivo e a não integração de algo que está lá. Melhor seria chamá-lo: ablação involuntária de corpo (ou imagem) presente no campo senso-perceptivo.

11-“O PARADOXO DAS ALUCINAÇÕES” (Dalgalarrondo, 2002) – A definição de ALUCINAÇÃO  implica a inexistência de objeto e, por isso mesmo, de qualquer SENSAÇÃO associada àquilo em cuja presença o paciente acredita. Não existindo SENSAÇÃO, não se pode falar em PERCEPÇÃO. Na ausência das duas, como classificar esses transtornos entre os da SENSO-PERCEPÇÃO? Todo e qualquer paradoxo é sempre aparente e comunica apenas que os nossos critérios são estreitos não servindo para dar conta dos fenômenos da natureza. Por isso, precisam ser repensados. Onde não há estímulo (objeto), tudo são REPRESENTAÇÕES. I. PAIM já o dissera há muito tempo. Recentemente (Amaral- JBP-56-4-2007), pensamos ter resolvido a origem do antigo e falso paradoxo, demonstrando que ele se deve a uma curiosa armadilha da língua alemã e seu termo para PERCEPÇÃO: WAHRNEHMUNG diz literalmente TOMAR POR VERDADE. Assim, tudo o que eles tomam por verdade (inclusive as alucinações) seria uma percepção o que é um contrassenso. Bem melhor é o termo latino do qual deriva percepção: PERCIPERE, tomar posse de. Só uma submissão intelectual inadmissível pode ter gerado esse aparente paradoxo entre nós. Em resumo: as alucinações seriam representações muito vívidas, com todas as características da percepção real, inclusive o poder de convencimento.

12-COMPULSÃO VERSUS IMPULSOS– originalmente, o termo compulsão era restrito ao fenômeno ritualístico das assim chamadas Neuroses Obsessivo-Compulsivas e havia um racional por trás disso. A palavra caiu no gosto geral e começou a ser aplicada a tudo o que, no comportamento humano, tendia à REPETIÇÃO. Considerando, entretanto, que os impulsos, automatismos e perversões também apresentam essa tendência à repetição, pode-se concluir que o critério não é bom. Enquanto, para os IMPULSOS, existe apenas um conflito entre duas forças contrárias: para a sua realização e para sua supressão ou adiamento (deixando outros critérios de lado), nos RITUAIS surgem condutas “ao lado” que poderiam anular, através do pensamento mágico (não lógico), uma ação, obsessão ou acontecimento temido. Considerando que o prefixo COM significa exatamente juntoao lado (CONSOANTE, aquela que soa junto; COMPANHEIRO, aquele com quem se come o pão), fica clara a inadequação de intercâmbio de termos. Melhor seria chamar, por exemplo “Trantorno do Comer Impulsivo” e não compulsivo.

13- AMBITIMIA– esse foi um termo muito caro a E. Bleuler, mas deve sua origem a um equívoco: o de que somos seres não divididos (in-dividuum). Muito pelo contrário, somos seres ambivalentes por quase todo o tempo e ficamos, com uma certa arrogância, identificando as divisões de sentimento em nossos pacientes. Dizemos ser esse um sinal ou sintoma das esquizofrenias, mas a ambivalência extrema seria muito mais evidente nas personalidades “borderlines” (amam, querem tomar posse e são tomados pelo ódio na impossibilidade). Uma primeira questão logo aparece: seriam os tais sentimentos opostos: sucessivos ou simultâneos? Se sucessivos, não haveria nada de “esquizofrênico” nisso. Por outro lado, os casos apresentados por Bleuler (foto de mulher que ri com a boca e chora com os olhos) semelham muito mais um esvaziamento dos afetos. A idéia de que os “borderlines” seriam formas limítrofes das esquizofrenias é um dos mais graves erros da história da psiquiatria e as assim chamadas “ambitimias” tiveram nele grande participação. Enquanto os primeiros não suportam o afastamento das pessoas e o isolamento, os segundos têm por característica fundamental essa tendência ao afastamento.

14- MÓRIA OU MOIRA– a propósito do anterior, nossos livros costumam trazer a referência ao primeiro termo como o estado de total esvaziamento afetivo-volitivo observado em alguns esquizofrênicos de longa data. As condutas tornam-se completamente sem propósito ou objetivo; os pacientes movem-se, ou são levados, para um lado ou para outro sem expressar qualquer intenção. Ocorre, porém, que há no grego a expressão MOIRA (e não MÓRIA) para se referir aos personagens trágicos que se tornam como que “joguetes do destino”, ao qual não podem resistir. Tudo leva a crer que um termo deriva do outro, mas, se é assim, não há por que continuar a utilizá-lo de maneira incorreta.

15– CLASSIFICAÇÃO DAS AMNÉSIAS QUANTO À EXTENSÃO– as duas “intuições sensíveis” segundo Kant, são o tempo e o espaço. Extensão refere-se ao ESPAÇO e, como todos sabem, período refere-se a TEMPO. Alguém pode ter dúvidas de que o fenômeno da memória é ligado primordialmente ao TEMPO? Sendo assim, a classificação deveria ser feita SEGUNDO O PERÍODO: curto e bem delimitado (lacunar); longo e sem limites mais precisos (massiva). Este último termo também dá o que falar. Os livros, em geral, tratam-na por MACIÇA, mas este termo também induz ao pensamento em algo concreto. Para os que dizem não haver MASSIVA em nossos dicionários e ser ele um anglicismo, respondemos que é termo de origem latina (em  francês e no castelhano há o massive, exatamente no sentido desejado). Por alguma razão, a palavra PERÍODO não nos parece suficiente e, quase sempre dizemos: período de tempo ou, pior ainda, “espaço de tempo”. Somos por demais “viciados” no concreto.

16- PENSAMENTO, LINGUAGEM E FALA–  talvez seja um preciosismo dizer que quando falamos em pensamento, na verdade estamos nos referindo à linguagem, uma vez que o único pensamento ao qual temos acesso direto, sem necessidade de alguma linguagem, é o nosso mesmo (embora alguns digam que, até para esse, haveria a necessidade de uma “linguagem interna”). Linguagem implica um conjunto de sinais (código) de comunicação dentro da mesma espécie. Podemos falar em linguagem: dos surdos, musical, gestual, mímica e talvez seja preconceituosa a classificação como protolinguagem daquelas que são utilizadas por povos primitivos. A palavra “FALA” deve ser reservada para se referir à emissão sonora e seria exaustivo citar as confusões que praticamente todos os livros fazem na sua diferenciação em relação à LINGUAGEM. Na fala propriamente dita interessam: volume, articulação dos sons e prosódia (expressão dos afetos através da fala). Damos, ainda, muito valor à observação do desgaste do aparelho fonador, uma vez que as manias cursam quase que invariavelmente com grave rouquidão.

17- INTELIGÊNCIA EMOCIONAL OU SOCIAL?– um “best seller” escrito por jornalista tentou consagrar o primeiro termo, mas, em verdade, aproveitou-se apenas de um dos aspectos do velho conceito de inteligência social que seria a capacidade de bem decodificar as informações contidas na comunicação humana (principalmente para além da linguagem verbal): mímica, gestual, prosódia e outros, de maneira a bem se adaptar a esse mesmo meio. Ocorre, porém, que, além desse aspecto relacionado à inteligência em geral, existe um outro: a partir dessa compreensão desenvolver instrumentos para modificar esse mesmo meio, influenciando outras pessoas. Não por acaso, encontra-se no final do referido livro um decálogo que resulta apenas em pusilanimidade e submissão ao meio. A educação deveria “…criar indivíduos capazes de fazer coisas novas e não simplesmente repetir o que as outras gerações fizeram (PIAGET).

18-TRANSTORNO DE ADAPTAÇÃO– eis um ítem diagnóstico que varia entre o inútil e o nocivo. Inútil, uma vez que “chega ao mesmo ponto de onde partiu”: a procura por avaliação psiquiátrica ou psicológica já se iniciara da constatação dessa mesma desadaptação. Nocivo, uma vez que parte do princípio de que viemos ao mundo somente para nos adaptar, independentemente da situação objetiva da vida. Há muitos ambientes humanos aos quais a saúde mental implica não adaptação a ele. Esse ítem decorre do mesmo espírito que gerou o conceito de inteligência emocional: adaptação a todo custo.

19-HIPERBULIA COMO SINTOMA?–  tentando ser coerente com os critérios já apresentados, a hiperbulia não poderia se referir a qualquer prejuízo (ver ítem 7), sinal ou sintoma. Dessa forma, nas situações de fanatismos ou querelência, habitualmente classificados como manifestações de hiperbulia, haveria uma preservação apenas da capacidade de determinação e até do pragmatismo, mas a fase da Vontade referente ao ajuizamento ou processo de deliberação estaria prejudicada, implicando prejuízo marcante para o a pessoa.

20-INCONTINÊNCIA EMOCIONAL E LABILIDADE AFETIVA – frequentemente, encontramos um intercâmbio de termos (“labilidade emocional e incontinência afetiva”), como se a escoha dos termos fosse indiferente. Emoção deriva de movere e implica geração de movimento. Essa é a razão pela qual pensamos ser muito melhor associá-la ao desencadeamento de uma ação: perigosa, prejudicial ao indivíduo (e ou sociedade) e somente contida através de força externa (por isso incontinência emocional). Já em relação aos afetos, a oscilação relativamente rápida é uma das suas características principais. Por isso, labilidade afetiva deve ser reservada à oscilação entre afetos opostos em curto período e sem acontecimentos do meio que a justifique.

21- “SEXARCA”– todos conhecem o termo menarca (primeira menstruação). Em um paralelo de gosto muito duvidoso, alguém criou a expressão assinalada para: “primeira relação sexual”. Ocorre, porém, que a menstruação é fenômeno meramente individual e fisiológico (embora também possa ser influenciada pelas relações humanas), enquanto a primeira relação sexual implica pelo menos duas pessoas e está longe de ser meramente fisológica. Além disso, só se utiliza menarca para pessoas do sexo feminino. Há um afã de gerar termos novos. Desses, muito poucos ficarão. Dentre esses, certamente os mais expressivos e de bom gosto.

22- “BULIMAREXIA”– eis um termo cujo simples escrever é já motivo de mal estar. A partir de dois termos absolutamente consagrados: Anorexia Nervosa e Bulimia, alguém resolveu criar um outro para se referir a pacientes que apresentassem manifestações das duas condições que são de natureza alimentar. A expressão Anorexia Nervosa é totalmente errada (ausência de fome só existe nos casos muito avançados e não há nada de errado com os nervos propriamente ditos), mas não há como com ele “brigar”. Se a junção de dois nomes humanos, com o objetivo de nomear um pobre terceiro, costuma soar mal, o que dizer da junção de termos técnicos!? Não nos parece (essa prática) coisa de gente séria.

23- “AFETOS HEBETADOS”– eis um exemplo de como um termo inadequado: hebefrênico (e que induz a erros), pode continuar a causar estragos, mesmo depois de abandonado e até condenado. O termo foi abandonado pois induzia à conclusão de que a forma de esquizofrenia era atribuída de acordo com a idade de início do quadro (o prefixo hebe significa jovem) e não por suas manifestações clínicas. Para o bem da terminologia, há que se eliminar todos os seus derivados do termo condenado, usando em seu lugar: afetos esmaecidos, esvaziados ou aplanados, por exemplo, sempre que se quiser referir à ausência de brilho, de oscilação ou modulação dos afetos.

24- “PERVASIVE”: INVASIVO OU GENERALIZADO?– aqui não sabemos o que foi mais grave: se a tradução para: “Transtorno invasivo da Personalidade” do termo pervasive (generalizado, difuso, no inglês) ou sua repetição ad nausean (literalmente) em várias publicações até hoje. Pior é que a expressão resultante não quer dizer absolutamente nada em português. Fica o registro e a esperança de que sejamos mais cuidadosos não somente com os conceitos, mas com o nosso maior instrumento de comunicação e de geração de cultura: nossa língua.

25- ALUCINAÇÃO: FUNCIONAL ou EM FUNÇÃO DE..?– As palavras têm sua vida própria em cada língua. Essa é a razão pela qual algumas traduções, aparentemente literais, decididamente não funcionam. ‘Funcional’, no uso corrente em nossa língua, é associado a: prático, objetivo, sem qualquer exagero ou filigrana. Por outro lado, em termos médicos, ‘funcional’ faz oposição a ‘estrutural’ (distúrbios funcionais versus lesões estruturais). Por isso, a nomeação como ‘alucinações funcionais’, daquelas que surgem somente quando associadas a um ruído contínuo, seja de: ventiladores, ar condicionados, motores de automóveis, aquecedores de água e outros, sempre nos incomodou. Quando, entretanto, pensamos na expressão “Alucinação em função de…”, tudo passou a fazer sentido, uma vez que elas, efetivamente, só ocorrem em função desses ruídos. Há que assinalar ser essa, a exemplo das ilusões, uma manifestação mista, pois associa uma ‘representação’ a uma ‘senso-percepção’. Contrariamente às ilusões, entretanto, as duas cursam em paralelo, não se misturando nem se confundindo. No mínimo, essa observação há ser útil para efeito de entendimento do fenômeno.

26- ESTADO CREPUSCULAR– esse é um exemplo de como expressões muito belas podem não significar absolutamente nada ou, pior, induzir a erros. Todos os esforços para a boa caracterização dos distúrbios da Consciência devem ter por objetivo separar duas dimensões: clareza versus turvação (mais ou menos pronunciada) e amplitude (do campo) versus estreitamento (também mais ou menos pronunciado). O crepúsculo, por definição, é um período no qual ocorre a diminução progressiva da claridade e, entretanto, a aplicação da expressão ‘estado crepuscular’ é associada a um estado não de perda de clareza, mas a um estreitamento da consciência que pode ocorrer em certas epilepsias. Para tentar explicar a expressão, já ouvimos colegas recorrendo a nuvens avermelhadas no horizonte e outras associações bizarras.

27- NEGATIVISMO OU SIMPLESMENTE ATITUDE DE OPOSIÇÃO?– negar-se a aceitar uma ordem, ou a entrar em comunicação com outra pessoa é, frequentemente, um ato de vontade plena. O termo ‘negativismo’ deve ser reservado às situações de impossibilidade para manter uma comunicação ou entrevista, apesar de algum esforço inicial por parte do paciente (quase sempre em estados catatônicos). Infelizmente, temos verificado uma banalização do uso do termo ‘negativismo’ para se referir a meras atitudes de oposição. Além de desconhecimento da psicopatologia, esse mau uso sugere algum preconceito em relação aos direitos dos pacientes. Não querer falar com um psiquiatra ou psicólogo (especialmente quando se sofreu uma intervenção à revelia) e não seguir suas orientações, está longe de ser suficiente para caracterizar algum sintoma ou sinal.

28- “INTELIGÊNC IA COMPATÍVEL COM A ESCOLARIDADE”– mais alguns anos de uso desta expressão, e as novas e futuras gerações julgarão ser a inteligência dependente da escolaridade e não o contrário. A inteligência, ou melhor, seres inteligentes, surgiram na natureza há muitas centenas de milênios. Já a escolaridade, propriamente dita, existe há apenas alguns séculos. Foi a inteligência quem criou a escolaridade e não o contrário. Aliás, o povo que mais é associado ao início e às bases do pensamento filosófico ocidental, era composto, em sua maioria, de analfabetos. A cultura grega foi eminentemente oral, por muitos séculos. Na investigação da inteligência, o ideal seria até mesmo a exclusão da escolaridade como critério. Sabemos ser isso impossível. Em verdade, aquela expressão quer dizer o seguinte: DESEMPENHO NOS TESTES PARA AVALIAÇÃO DA INTELIGÊNCIA COMPATÍVEL COM A ESCOLARIDADE (DE UM CERTO PACIENTE). As simplificações podem ter um efeito desastro so na formação das pessoas.

29-PARAMNESIA E PSEUDOLOGIA “FANTÁSTICAS”— o uso desta última palavra, em uma nomenclatura que se pretende séria, deveria causar um certo constrangimento às pessoas ligadas à ciência. Afinal, um dos maiores esforços do espírito científico, através dos tempos, tem sido exatamente o de demonstrar que não há nada de propriamente fantástico nos fenômenos da natureza. Chamemos a PARAMNESIA apenas de DELIRANTE, uma vez que os pacientes passam a referir a lembrança de “acontecimentos” no passado que, em verdade, só se produziram a partir da ótica delirante atual. Quanto à certeza de que o paciente estaria modificando algo efetivamente acontecido, ou simplesmente criando uma história “de novo”, parece-nos um esforço inútil. Já em relação à PSEUDOLOGIA (ou mentira patológica)—cuja diferenciação em relação ao mero impulso de mentir de forma contumaz (provável futura categoria entre os transtornos dos impulsos) não é muito simples—não vemos necessidade de qualquer qualificativo. O critério de acreditar na própria história contada e viver de acordo com isso é bom, mas não parece suficiente do ponto de vista semiológico. Gostamos também de aplicar o critério da não obtenção de vantagens. O outro problema, em relação a essa mesma condição, seria sua diferenciação dos Transt. Delirantes Pesistentes.

30-RELAÇÕES OBJETAIS ou “CONSTITUTIVAS DE UM SUJEITO”?– Aqui, vemos um belo conceito e uma denominação discutível. Referem-se àquelas relações muito primitivas, em geral com mãe e pai (ou substitutos), em torno das quais vamos construindo nossas individualidades e nos constituindo como sujeitos. Seriam essas as relações que nos influenciariam fortemente por toda a vida. Uma fragilidade marcante, nesse processo, seria observada nas personalidades classificadas como “Borderlines” e disso decorreria sua invariável sensação de vazio (chegando a ser critério) quando os objetos amados não estão presentes. Sendo assim, por que não as chamamos “RELAÇÕES CONSTITUTIVAS DE UM SUJEITO“? Pensando bem, e sem pret ensão de originalidade, mais do que as atitudes das pessoas que representam aquele papel, seriam os nossos próprios sentimentos em relação a elas que determinariam essa nossa constituição como sujeitos (ou seja, elas funcionariam mesmo como objetos dos nossos sentimentos, em torno dos quais nos constituiríamos). Por essa razão, a denominação original, em nossa opinião, continua muito adequada.

31-INSÔNIA FAMILIAR FATAL–Há dois problemas com a denominação desse tipo de insônia. Utilizar o termo “FATAL”, para denominar uma condição clínica qualquer, além de ser de um enorme mau gosto, atribui a ela um destino inevitável, decorrente, em princípio, da nossa incapacidade momentânea de mudar seu curso. O outro problema, é o uso do termo “FAMILIAR”, somente porque foi identificada em algumas poucas famílias. Esse termo é utilizado quase que em oposição a “GENÉTICO”, uma vez que implica, apenas: ter nascido e se criado em uma certa família eleva o risco para um transtorno qualquer. As investigações epidemiológicas de adoção, têm como maior objetivo afastar, exatamente, o papel mais propriamente familiar (ambiente em que cresceu) como fator de risco, de maneira a poder confirmar, ou não, o papel da genética. Além disso, os pesquisadores da área estão diante de um enorme problema: como continuar a chamar de FAMILIAR um transtorno associado a uma infecção por “Prions”? A única possibilidade que vemos, nessa compatibilização, seria uma infecção congênita, mas não parece ser o caso.

32- TRANSFERÊNCIA “VERSUS” CONTRA-TRANSFERÊNCIA: Ponto “versus” Contraponto; Mestre “versus” Contramestre (e tantos outros exemplos). Até hoje, utilizamos a expressão contra-transferência associada a um juízo de valor e no sentido negativo: incômodo ou mal estar, causado no terapêuta pela transferência a ele dirigida por um paciente. Agora, estamos seriamente inclinados a pensar nos mesmos termos do contraponto musical: apenas o que se passa “do outro lado”, ou seja, nos sentimentos do terapêuta, a partir da transferência do paciente (instrumento considerado essencial em qualquer tratamento baseado na existência de determinantes inconscientes na conduta humana). Com isso, temos a impressão de resgatar a inspiração inicial, embora entreguemos a tarefa da verificação a pessoas mais capazes. De qualquer maneira, o olhar aqui proposto é muito mais interessante, uma vez que transforma em objeto de estudo TODOS OS SENTIMENTOS DOS TERAPEUTAS. Por que investigar apenas aqueles que são considerados “negativos”: hostilidade, incômodo, mal estar, impaciência, etc.? Aliás, do ponto de vista da sua influência sobre nós e nosso autoconhecimento, esses sentimentos seriam muito mais positivos (no sentido do efeito) do que seus opostos. NOTA: esta nota teve por origem a frase de uma MRes: “Tive uma contratransferência positiva…”! Depois da sua “correção”, demo-nos conta de que ela poderia estar mais do que certa. De qualquer maneira, a ser assim, a frase teria que ser “Minha contratransferência foi….”,uma vez que sempre existiria.