Temas e Controvérsias

HOUSE (SERIADO): “NO SYNDROME, NO MEDICINE”¹

Depois de ouvirmos, há pelo menos dois anos, considerações elogiosas acerca do seriado de TV—provindas de jovens médicos e outros profissionais da área da saúde—finalmente, e por acaso, esbarramos em uma daquelas apresentações. Como era de se esperar de uma série que alcançou “sucesso” na TV, tudo era espetaculoso, teatral e exagerado. Podia-se ver ali muitas coisas, menos o espírito que norteia a boa medicina. Não fosse o interesse despertado nos jovens da área, teríamos mudado de canal e nem pensaríamos mais no assunto, uma vez que a medicina não se presta a qualquer espetáculo. Dirí amos mais: sempre que o espetáculo começa a predominar, a grande sacrificada é a medicina.

Quem de nós, entretanto, consegue estar totalmente livre do gosto pelo espetáculo? O mundo, mais do que nunca, tem privilegiado o espetáculo e, entre os médicos, valorizado os assim denominados “medalhões”. Não publicou uma prestigiada revista uma lista dos “melhores médicos do Brasil” em uma curiosa eleição, provavelmente entre eles mesmos e os editores das colunas sociais? Quando vemos essas coisas, e não de todo livres do risco da vaidade, lembramo-nos da frase de um paciente que fora muito mal tratado por um desses médicos excessivamente midiáticos: “Medalhão! Agora? Só com arroz à piemontesa!“.

Que interesse, então, pode haver no estudo daquele seriado? Por que teria ele despertado tanto interesse, especialmente entre os jovens? Respondemos: porque é uma alegoria do espírito que tem imperado na medicina d os dias que correm. No exagero, uma boa chance de desvelar deformações aparentemente sutis. Nosso desafio passou a ser: perceber e demonstrar os pontos onde a deformação é mais evidente e estabelecer suas conexões com a prática deformada de certas tendências atuais da medicina. Isso nos obrigou à paciência de ver cerca de uma dezena de outros episódios.

De repente, uma clareza: a grande ausente de toda série é “S. Majestade, A SÍNDROME”, essa espécie de ponto firme, onde o intelecto pode se apoiar, momentanea e humildemente, antes de avançar no estabelecimento das possíveis entidades nosológicas e causas das situações abordadas. Nenhuma palavra sobre esse belo instrumento que sempre nos impressionou e que, hoje, estamos convencidos, é o ponto de partida de qualquer raciocínio mais propriamente médico². Fora da síndrome, tudo é um “atirar para todo lado”, tentando esbarrar em um “s uper dado novo” que, alguns acreditam, tudo iria esclarecer. Um novo sinal ou sintoma…uma nova hipótese e, assim, ficam os adoradores de aparelhos literalmente “batendo cabeça”³.

Uma outra tendência, que ataca os princípios do bom raciocínio sindrômico, pode se encontrar nos esforços pelo desenvolvimento de ALGORITMOS no processo diagnóstico de transtornos: “sequência finita de instruções bem definidas e não ambíguas, cada uma das quais podendo ser usada mecanicamente em um tempo também finito“. O simples uso, aliás, da palavra MECANICAMENTE  deveria ser suficiente para que os mais sensíveis desconfiassem da sua possível aplicação em medicina. Tratam o processo diagnóstico como uma espécie de “carta ao tesouro”: cada pista encontrada é dada como “certa” e nos aproximaria mais e mais do objetivo. Em verdade, o processo diagnóstico assmelha-se muito mais à resolução de u m labirinto: pode haver muitas voltas ao ponto de partida.

¹Palavra inglesa que tem dois significados: a atividade profissional e os medicamentos que utilizamos. Essa reificação do termo deve dar o que pensar, uma vez que um dos nossos maiores esforços, nos dias que correm, é dissociar a atividade médica do uso obrigatório de remédios. Bem tratar, com frequência, é não dar remédio algum.

²Foi C. Galeno quem primeiro se apercebeu da importância das síndromes. Que alguns sintomas exerçam uma espécie de força gravitacional sobre outros e andem juntos (syn-dromus) deve ter-lhe causado grande impressão. Tudo o que mais se buscava na filosofia da época eram constantes: teorema de Pitágoras e outras.  

³ Que os aparelhos sejam apenas prolongamentos do intelecto e não sua substituição, da mesma maneira que as ferramentas deve m ser o “prolongamento da mãos”.

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ