Temas e Controvérsias

LINGUAGEM: CAÍDA DO CÉU OU “SALTO EVOLUTIVO”?

(Que os autores em PSICOPATOLOGIA sejam fiéis às suas próprias definições)
No principio
“Mas já nos comunicávamos bem antes dele!”

Por um bom tempo, julguei ser apenas por inadvertência a confusão (a palavra é essa mesma) que praticamente todos os livros de psicopatologia fazem quando abordam a FALA e a LINGUAGEM em um único capítulo, tratando-as como se fossem totalmente interdependentes. Hoje estou convencido de que há um problema bem mais profundo na origem desse que considero mais do que um ERRO: um resquício da arrogância da razão humana; da ideia de que fomos feitos “à imagem e semelhança..”; de que o “VERBO” tem algo de divino e, por fim, a reprodução do velho preconceito contra os animais. Bastava que os autores fossem fiéis às suas próprias definições para que percebessem: quase todos os mamíferos e aves—quem sabe alguns répteis?—dispõem de alguma linguagem ou pelo menos um rudimento delas. Vejamos algumas definições para LINGUAGEM propostas por psiquiatras:
1- “Sistema convencional de símbolos arbitrários usados como um código para representar e comunicar mensagens…Visto que a linguagem é um dos aspectos definidores do comportamento humano, o termo não se aplica à comunicação entre animais.” (RJ Campbell, Dic. de Psiq.) NOTA: como se nós não o fôssemos também!
2- “Se constitui como sistema codificado de sons e sinais animados de intenso significado…” (N. de Mello, sem especificar uma “exclusividade” humana)
3- “É um sistema de sinais do qual se serve o que fala…” (K. Jaspers, cometendo o erro grave já na própria definição). O mesmo faz H. Ey que, ao apresentar uma “SEMIOLOGIA DA COMUNICAÇÃO” (LINGUAGEM), inicia o parágrafo com “Distúrbios da Articulação”(FALA).
4- E. Bleuler, H. Deldado e K. Schneider sequer se referem a LINGUAGEM e/ou FALA em seus livros de PSICOPATOLOGIA.
5- J. YAGER and M. GITLIN (K. AND SADOCK, oitava ed.) simplesmente tratam LINGUAGEM e FALA como a mesma coisa: as afasias são ali abordadas sob o título “LANGUAGE DISORDERS“.
6- “…É um sistema de signos…fonéticos e gráficos…(a linguagem) é especificamente humana. Animais inferiores: comunicação extremamente estereotipada (E. Cheniaux).
7- Dalgalarrondo inicia seu capítulo sobre a LINGUAGEM com uma sentença digna do Cons. Acácio (Eça de Queirós): “A linguagem, particularmente na sua forma verbal, é uma atividade especificamente humana…”. Duvidar disso, só acreditando nas fábulas e “No tempo em que os animais falavam”. Quando cita as funções da linguagem, porém, o autor lista atividades que compartilhamos com os animais: comunicação, instrumento de expressão, dimensão lúdica e outras. Na continuação, cita um autor que elogia muito: “A linguagem—fala— é uma inesgotável riqueza de múltiplos valores…inseparável do homem…um fio profundamente tecido na trama do pensamento…o tesouro da memória”. “Literatices” à parte, espremendo-se essas sentenças nada resulta de útil ou belo. Apenas um desfile dos preconceitos assinalados contra nossa origem animal. Como consequência dessa confusão os distúrbios específicos da fala são também tratados no capítulo sobre linguagem.
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FALA: A ÚLTIMA E A MAIS FALSEÁVEL DAS LINGUAGENS!
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É bom frisar bem que, a valerem os penduricalhos nas definições (os trechos que atribuem exclusividade aos seres humanos como capazes para a linguagem), as expressões: linguagem corporal, mímica, musical e outras seriam impróprias e precisariam, quando usadas, ser acompanhadas de aspas, o que seria um contrassenso. Seria ou não uma violência contra as muitas formas de comunicação de que nós mesmos (animais, como todos) dispomos? Mas, a rigor, a grande limitação aqui imposta por essa restrição um tanto absurda se dá exatamente na nossa compreensão dos nossos semelhantes. Afinal, os demais animais não estão muito preocupados com isso e: “A fala é não somente a última forma de linguagem, como a mais facilmente falseável de todas” (F. Nietzsche, “A Gaia Ciência”) e “Deus nos deu o verbo para que escondêssemos melhor os pensamentos” (STENDHAL, “O Vermelho e o Negro”)
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E PARA OS LINGUISTAS? O QUE SERIA A LINGUAGEM
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Curiosamente, os especialistas na área são bem menos restritivos em suas definições:
“Um sistema de comunicação…No caso dos seres humanos encontra-se extremamente desenvolvida, quando comparada com outras espécies animais…”
“Utilização de códigos capazes de transmitir informações entre emissor e receptor capazes de estabelecer comunicação”.
“É o instrumento que têm todos os animais para se comunicar uns com os outros, sendo diferente e única para cada espécie…”.
Pensando bem, é bastante natural que quem se dedique a esse tema mais especificamente não o restrinja desmedidamente. É essa ampliação e procura por aproximação entre as diversas espécies que cria o maior interesse sobre tema. No mais, ficaríamos discutindo: sintaxe, regras gramaticais, etc. Eu fico com o início da fábulas: “No tempo em que os animais falavam….”; cuja interpretação talvez seja: no tempo em que nos comunicávamos mais diretamente com os animais ou quando não tínhamos vergonha do animal que somos e que nos sustenta até hoje.
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A FALA, ESSA SIM, É ESPECIFICAMENTE HUMANA.
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Antes de tudo, é bom assinalar uma outra contradição comum entre os autores em Psicopatologia: mesmo que tivessem razão quanto à linguagem ser especificamente humana, nada justificaria a reprodução do erro de K. Jaspers, Dalgallarrondo (e outros) quando misturam LINGUAGEM e FALA. Esse erro, aliás, levou a que as SÚMULAS PSICOPATOLÓGICAS dos vários casos clínicos apresentados pelos psiquiatras assinalem apenas UM item englobando as duas funções. Se, efetivamente, não há fala sem linguagem—a do papagaio não pode ser considerada uma fala propriamente dita, pois não dirigida aos da sua espécie—o contrário não é verdadeiro: há, sim muitas formas de linguagem que não precisam da fala. Aquela junção induz à conclusão, por ex., de que os sinais gráficos para os fonemas (linguagem escrita) estariam excluídos da definição de…LINGUAGEM. E então o absurdo estaria totalmente configurado.
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CAPÍTULOS DIFERENTES PARA FALA E LINGUAGEM
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Por tudo isso, há que se chegar a pelo menos um ponto pacífico nas nossas definições: A LINGUAGEM E A FALA PRECISAM SER TRATADAS EM CAPÍTULOS DIFERENTES. É o que já faço há muitos anos. A primeira sempre associada umbilicalmente ao PENSAMENTO. Afinal, o único pensamento ao qual temos acesso sem necessidade de alguma linguagem é o nosso mesmo. Já a FALA deve ser tratada em um capítulo específico. Afinal, implica EMISSÃO SONORA apresentando sinais e sintomas (?) específicos, não dependentes, na maior parte das vezes, do PENSAMENTO e da LINGUAGEM: as pessoas podem estar completamente capazes para a linguagem, mas incapazes para a fala, como nas afasias motoras, por exemplo. Sendo assim, haveria 4 características na fala que poderiam sofrer alterações associadas a alguma patologia: 1- VOLUME, 2- ARTICULAÇÃO (dos sons), 3-PROSÓDIA (a expressão dos sentimentos através da fala) e 4- DESGASTE DO APARELHO FONADOR, cuja caracterização pode ser útil no diagnóstico de graves, muitos e duradouros episódios de elevação do humor.
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REFINANDO A TERMINOLOGIA
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Em consequência do argumentado acima, termos como: logorreia, pressão da fala, bradifasia, taquifasia e outros, não associados diretamente a distúrbios na emissão sonora, devem ser incluídos em PENSAMENTO E LINGUAGEM. Afinal, sua expressão na fala é consequência de distúrbios na esfera do pensamento e outras funções. Já mutismo, mussitação e verbigeração são distúrbios que ficariam em uma situação limítrofe sobre a qual precisamos refletir melhor. Em princípio, penso que cabem sob as duas denominações.

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ