Temas e Controvérsias

Mais Cuidado com a “PELE” dos pacientes Esquizofrênicos!

("DEVAGAR COM O ANDOR...")
Bolhas de sabaoÉ da índole da “mídia” não ter muito cuidado com as informações provindas das investigações científicas. Sempre tivemos a esperança de que seus contatos permanentes com gente de ciência haveria de os educar. Tem acontecido exatamente o oposto: são as pessoas de ciência que, cada vez mais, têm se deixado levar pelos apelos do sucesso a todo custo. A ciência e a cultura estão correndo o sério risco de se tornarem reféns da “mídia”. O interesse desses veículos nunca vai além de: manchete e matéria que se esgotam em apenas um dia. Nunca os vimos procurando pelos resultados, ou projeções, de estudos anunciados antecipadamente. Não há nada a lhes cobrar. É, como dissemos, algo simplesmente dado.
A situação mais trágica que acompanhamos, nesse sentido, foi quando da apresentação no “Fantástico” de uma série sobre idosos (“O Amor na Terceira Idade”, há cerca de 3 anos) na qual foi apresentada a relação amorosa entre uma conhecida intelectual com um paciente psiquiátrico mais jovem e o bem que tudo aquilo estava fazendo a ambos. Quase imediatamente após apresentação do programa, o paciente simplesmente se suicidou. Evidentemente, nada disso foi noticiado na semana seguinte. Nossos pacientes não são “homens (ou mulheres) de plástico”, como costumava dizer a vinheta do programa, nem participam de um certo “Show da Vida”.
O anúncio da reprodução de células tronco, originárias da pele de pacientes esquizofrênicos de longa data (por um grupo da UFRJ), e a observação de diferenças marcantes em algumas das suas funções—quando comparadas à células obtidas de controles sem a doença—deve ser louvada como uma grande conquista. Para pessoas ligadas à ciência essa é já uma grande notícia. Quem precisa de novidades bombásticas, e delas vive, é a “mídia”. As especulações apresentadas e projetadas por seus autores não acrescentaram, do ponto de vista da ciência, absolutamente nada ao interesse do que já foi obtido.
O estabelecimento de relações diretas entre a doença e o maior consumo de oxigênio/maior produção de radicais livres (observados nas células originárias dos pacientes) é no mínimo precipitada. Tirar dessa especulação, uma segunda, implicando a escolha de medicamentos específicos para cada paciente, tomando por referência sua ação de diminuição do consumo de oxigênio nas células, é ir longe demais. Deixar que se levantem expectativas sem qualquer fundamento, chega a ser criticável.
O que dizer, diante da fala de um senhor idoso (ao lado da filha que sofreria de esquizofrenia há mais de 30 anos), quase chorando de emoção: “Agora sim…agora eu tenho esperanças de que vão resolver o problema da minha filha?” O que responder, ainda, à indagação a nós dirigida por mensagem eletrônica?
Meu nome é….., moro em….. RJ, e tenho um filho de 23 anos que +- 3 anos começou a ter atitudes estranhas, e foi diagnosticado de esquizofrenia. Hoje vi uma reportagem no Jornal Nacional sobre uma descoberta que vcs fizeram e gostaria de ter mais informações. Se vocês puderem me ajudar serei eternamente grata…
Voltando à discussão do material apresentado, e, para tanto, somos obrigados a nos limitar às matérias de jornal e TV (cujo não desmentido ou correção pelos responsáveis, corresponde a uma confirmação):
1-Sendo o material (pele), originário de pacientes submetidos a diversos tratamentos, e por longo prazo, o mais provável é que o achado se relacione mais às intervenções terapêuticas (levadas a efeito nesse período) do que propriamente à fisiopatologia da doença em si. A pele, com sua camada gordurosa, costuma ser ponto de concentração de substâncias lipofílicas e de seus metabólitos. Quem sabe não há aí uma pista para a abordagem das múltiplas manifestações alérgicas e de fotosensibilidade apresentadas por esses pacientes?
2-Mesmo considerando que esse achado se confirme com pacientes de pouco tempo de tratamento—não achamos razoável que seja “virgem de tratamento”, pois implicaria seu adiamento em função da pesquisa, o que seria antiético e desumano—o achado estaria longe de se relacionar diretamente à “causa”¹ da doença.

3-Considerando, ainda, que o achado efetivamente se relacione a uma cadeia de acontecimentos ligados diretamente à doença, isso não significa que deva ser transformado em alvo específico para a terapêutica. Todos sabemos que os fenômenos da natureza se dão em uma cadeia—por vezes circular—de acontecimentos. O achado de um “elo” qualquer não autoriza a nele ver o seu início e, menos ainda, traçar métodos de intervenção a ele dirigidos.

Apenas para efeito de raciocínio, imaginemos que as melhores expectativas se confirmem: 1-As alterações nas funções observadas sejam um reflexo direto do que se passa no cérebro; 2-Esse achado esteja relacionado diretamente à origem e fisiopatologia da doença; ainda assim, sua única consequência clínica seria possibilitar a testagem em laboratório para escolha da droga mais indicada àquele caso. Ou seja, os prognósticos continuariam os mesmos, assim como riscos de intercorrências indesejáveis. Além disso, a simples observação clínica já oferece tantos indicadores para a escolha da melhor droga, que esse recurso, caro e pouco prático, provavelmente se transformaria em apenas mais uma curiosidade.
Há ainda duas informações truncadas na matéria. Ao que tudo indica, o material referente ao “grupo controle”—com o qual o metabolismo das células dos 11 pacientes foi comparado—parece não ter pertencido propriamente a um grupo, mas a apenas “…uma mulher de meia idade”. Isso não tira o valor do trabalho, mas enfraquece muito suas conclusões. Por que tanto açodamento? Seria tão difícil reproduzir material de um verdadeiro grupo controle, com perfil semelhante, para efeito de comparação?
Um outro complicador, um tanto disfarçado na matéria, foi a observação da ação do ácido valpróico na regularização das funções das células que, originalmente, consumiam muito mais oxigênio. Como os psiquiatras sabem muito bem, aquela substância tem algumas indicações na nossa especialidade: como estabilizador do humor, nos Transt. Bipolares; na inibição de impulsividade, em outras condições, além de ser anticonvulsivante. Não conhecemos sua indicação para tratamento das esquizofrenias. Esse poderia ter sido um dado simplesmente omitido, mas dizer que: “Essas falhas foram remediadas…quando os pesquisadores usaram a. valpróico, uma substância usada no tratamento de portadores de transt. mentais”, sugere indução intencional a uma falsa conclusão: a de que esse último achado reforçaria as observações iniciais. Ela é, em verdade, um complicador.
Não estamos, com isso, diminuindo a importância do achado e, menos ainda, da técnica desenvolvida. Voltamos a dizer: sua importância vive por si e não precisa das projeções apresentadas.

¹Muito melhor do que falar em causa de uma doença, é o conceito de equação etiológica. Aquilo que chamamos doença nada mais é do que um grave desequilíbrio de um organismo, provocado pelo “resultado” de uma equação de fatores de risco “versus” fatores de proteção. Quer nos parecer ser a Coréia de Huntington a única condição clínica que sempre se expressa, independentemente dos fatores de proteção. Por isso mesmo, nunca falamos de CURA para os diversos transtornos. Esse termo deve ser reservado às doenças infecciosas e a algumas tratadas cirurgicamente. Na clínica, reestabelecemos uma certa homeostasia, mas os riscos continuam lá.

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ