Temas e Controvérsias

MBE¹: FORNECENDO INSTRUMENTOS OU TENTANDO SUBSTITUIR A CLÍNICA

Quem não gosta de evidências? O primeiro problema, entretanto, decorre do próprio termo. Em princípio, EVIDÊNCIA significa apenas que todos estão vendo a mesma coisa; esse algo a se ver saltaria aos olhos de todos. Como sabemos, porém, as grandes descobertas da ciência foram consequência exatamente do contrário: da não satisfação de alguns poucos com o que a maioria considerava uma evidência: que tínhamos sido feitos à semelhança de Deus; que o sol girava em torno da terra, por exemplo.

A MBE partiu de um bom princípio: não aceitar a autoridade de alguns médicos como critério de verdade e orientação de condutas. Na psiquiatria, em especial, quantos erros diagnósticos graves foram cometidos e terapêuticas mal orientadas, somente porque se baseavam em “diagnósticos magistrais”, no “jeitão esquizofrênico”, na “parede de vidro” ou no “cheiro de esquizofrenia”! Submetidas aos Critérios de Feighner, ao RDC ou à  DSMIII, quantas mistificações caíram por terra! Quantos diagnósticos, constantes até de livros clássicos, foram modificados! Urgia que se fizesse uma revisão profunda de todas as práticas. Essa revisão, entretanto, hoje se arrisca parodiar a ama desastrada que, depois de lavar cuidadosamente o bebê na bacia, jogou-o fora junto com a água servida.

Tem se tornado evidente, entre os aplicadores da MBE, a tentativa, não somente de instrumentalizar e servir de contraponto crítico à clínica, mas sua substituição por uma “nova prática”. É mais um sinal dos tempos: o culto à objetividade a qualquer custo; à operacionalização e à criação de algoritmos a serem aplicados (quase) mecanicamente. Aquilo que vamos tentar demonstrar, é que há nisso uma mistificação, quase como se o “rabo pudesse balançar o cachorro”.

Não há uma confissão explícita, mas o pano de fundo dos seus ataques à clínica passa pelo ataque à máxima: CADA CASO É UM CASO. Reconhecemos ter essa máxima sido mal usada e servido para encobrir muita ignorância. A essa, pode-se contrapor uma outra: CASO ÚNICO, CASO NULO (do ponto de vista da ciência). Felizmente, não existem “casos totalmente únicos” (sem qualquer relação com os demais), mas, com toda certeza, e apesar do mau uso, CADA CASO CONTINUA A SER UM CASO, e com suas peculiaridades únicas.

Quem pode duvidar da importância da Epidemilogia? Quando a tomamos, entretanto, como referência principal da clínica, arriscamo-nos a cair em graves erros. Em princípio: 1-baseia-se no passado e nossos casos estão ali, diante de nós.  Deve ser o critério principal para políticas públicas, não para a clínica²; 2-trata cada caso como um percentual de risco, mas, para nós, cada paciente é 100%; 3-oferece falsas certezas e estimula uma certa preguiça intelectual. Em relação à avaliação do risco para o suicídio, por exemplo, quem julgar que uma mulher casada, com vários filhos e menos de quarenta anos, está livre do risco, apesar de moderadamente deprimida, poderá cair no pior de todos os erros. Com relação às metanálises e à valorização da bibliografia, não há nada a opor, desde que não se as considere e trate como tábuas da verdade, o que seria repetir aquilo que começaram por atacar. Há que aprender a conviver um pouco mais com a dúvida, de maneira a não repousar em falsas certezas.

Voltemos à clínica, e, para demonstrar as fragilidades das falsas objetivações do conhecimento, nada melhor do que os T. SOMATOFORMES. Considerando que, na identificação dessas condições, a FORMA  de apresentação dos sintomas é o mais importante (Max Carvalho), como se poderiam criar etapas operacionalizadas para a sua identificação? O estabelecimento de algum número de sintomas presentes (sem fisiopatologia identificável) como um dos critérios, é possível. Com isso, entretanto, aplicaríamos apenas critérios negativos: “não encontramos fisiopatologia, logo, trata-se de T. Somat.!”. E os achados positivos? Como mensurar, por exemplo, teatralidade, sugestionabilidade e atitude sedutora, típicas nesses casos?

Há, ainda, uma associação indisfarçável da MBE com os procedimentos jurídico-policiais o que não é criticável. Não devemos esquecer, contudo, de que, mesmo nesses casos, a valorização de evidências implica uma fragilidade: “evidências circunstanciais” não são boas para julgamentos. Mais do que isso, é exatamente entre detetives que encontramos os maiores céticos em relação às evidências, até porque, muitos dos criminosos se esmeram em produzir falsas evidências. Com muita frequência, esses mesmos detetives como que “perseguem” uma intuição aparentemente em oposição às aparências.

Por fim, há sempre algo de intuitivo e indispensável à boa clínica: como pesar (Risco/Benefício), diante de um caso, cada possível consequência de nossas condutas na qualidade de vida de um paciente? Interferências: na libido, no peso corporal, na produção de um tremor leve, na coordenação motora, por exemplo, podem ser desastrosas para alguns e sem grandes consequências para outros. E isso, somente no tête-à-tête é possível fazer bem, assim como as mudanças sutis e rápidas de rumo.

¹Medicina Baseada em Evidências

²A estatística (da qual deriva a epidemiologia) surgiu na Inglaterra (John Graunt, 1662), associada, primeiramente, ao registro de mortes e suas possíveis causas. A vida e os números nem sempre se associam muito bem. Quando as pessoas dopovo dizem “Não quero me transformar em estatística” (no sentido de vítimas da violência), sintonizam muito bem com a história. Que a epidemiologia sirva, humildemente, à vida, e não o contrário.

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ