Temas e Controvérsias

NEUROCIÊNCIA: O MITO DO SÉCULO XXI?

(A Ilusão do "Poder Ilimitado do Cérebro")

Nietzsche escreveu, certa vez, que a ciência havia solapado as bases de todos os mitos (Gaia Ciência ou “O Alegre Saber”). Como, segundo ele, os povos não vivem sem mitos…..a ciência haveria de se tornar o grande mito moderno. Um breve olhar para as promessas, apregoadas e prometidas, por uma certa “ciência” aos seres humanos, demonstra como ele tinha razão: uma vida quase infinita (congelamentos, clonagens e outros métodos), abolição de todas as dores, possibilidades ilimitadas para o poder da inteligência e razão humanas… Afinal, quais foram as promessas que, através dos tempos, atraíram povos inteiros para os templos? Diga-se de passagem, os “cientistas” não precisam sequer apelar para uma “outra vida”. É verdadeiramente difícil resistir a esses apelos. A condição humana, especialmente quando nos damos conta da nossa inevitável finitude, é mesmo difícil de suportar.

A origem dos erros, nesse tema, é a mesma que está na base do que já se chamou “futurologia”: tomam-se dois pontos no tempo e, a partir da evolução de alguma manifestação humana, nesse período, projetam-se os dados para o futuro. As conclusões são sempre estapafúrdias. Vejamos, por exemplo, a expectativa de vida nos países mais ricos: como, em cerca de 80 anos, essa expectativa quase dobrou, concluíram alguns, apressadamente, que, em outros 80 anos, dobrará de novo, até o infinito. E ainda há quem perca tempo com esse tipo de discussão, inclusive aqui, neste espaço! O problema, é que tivemos notícia de que, em congressos voltados para a investigação e tratamento de idosos, esse tipo de afirmação é uma espécie de “moeda corrente”. Aliás, esta talvez não seja somente uma metáfora.

Uma simples comparação com o que se passou com os recordes, nos esportes, é suficiente para jogar por terra esse tipo de “conclusão-regra de três”. Há um mesmo número de décadas, os recordes eram batidos em minutos (para corridas e nado em longa distância), hoje, o são em segundos ou décimos de segundo. Em saltos e lançamentos, as diferenças atingiam metros, após o desenvolvimento de uma nova técnica, por exemplo. Hoje, em centímetros ou fração. Atingimos um patamar na capacidade humana, a partir do qual, não haverá mais grandes saltos. Avanços, haverá sempre, mas não segundo os caprichos de pesquisadores afoitos e sedentos de espetáculo.

Até a literatura anda flertando e se curvando a esse tipo de mistificação (para não falar nos patrocínios). A grande atração (“estrela”, segundo anúncio muito significativo e usando linguagem pouco comum entre cientistas) da FLIP, em 2011, será um certo M. Nicolelis (Univ.de Duke, USA) que anda prometendo: “um novo mundoonde o culto ao corpo dará lugar ao culto ao cérebro” (entrevista, O Globo, 15jun). Nesse ponto, aliás, parece haver mais uma aproximação entre alguns neurocientistas e certas religiões que sempre viram o corpo/sexo apenas como um “problema inevitável” e “algo a ser superado”. Ao que tudo indica, no novo mundo que prometem, com seu culto ao cérebro, não haveria muito espaço para atividades “tão irracionais” como o sexo¹. Uma pergunta que se coloca, de imediato, é se no “corpo virtual”, prometido aos paraplégicos, está previsto algo parecido com um órgão sexual. Há pessoas para quem esse deve um assunto sem maior importância. Aquele desprezo pelo corpo dá o que pensar.

O que mais preocupa, entretanto, é algo que já está acontecendo: um ataque às individualidades, cada vez mais apurado, valendo-se dos mais variados aparelhos: “Estamos nos aproximando rapidamente da habilidade de conectar vários cérebros uns nos outros…essas pesquisas vão mudar o perfil de ações econômicas, políticas e sociais no mundo.” Eis a chave para entender todo esse investimento: como apurar e refinar os instrumentos de dominação de alguns países sobre outros; de algumas classes sociais sobre outras etc. Ou alguém, por aqui, ainda acredita que a “máquina de guerra”, que está em ação mundo afora, visa proteger as maiorias?

Acabou o conceito antigo de que o cérebro é um decodificador de informação passiva. Perguntamo-nos se, nos meios onde ele transita, alguém ainda pensava dessa maneira, pois, por aqui, já o sabemos há muito tempo. O que poucos se dão conta, porém, é que a individualidade, no registro do experimentado–e as consequentes interpretações–depende mais da capacidade de esquecer do que lembrar. Quem se “lembra” de tudo são os gravadores e câmeras. Cada um de nós, ao contrário, seleciona INCONSCIENTEMENTE, aquilo que será, ou não, incorporado. Quando essa capacidade se perde, resulta um precário desempenho intelectual, como nas pessoas incapacitadas de esquecer (alguns casos de Asperger). Sua memória funciona de maneira mais parecida com a das máquinas, sem qualquer criatividade. Só individualidades se expressam e criam e o que esse senhor vem nos propor é o fim das individualidades! A um povo, cujas manifestações culturais não escondem individualidades, mostram rostos particulares e não massas amorfas².

Por fim, diríamos que qualquer submissão a máquinas, ou a outras mentes, implica um “aquém no humano”. Foi o poder de crítica que mais nos diferenciou na natureza. Por isso, é sempre bom lembrar da canção: “…Eu posso decidir se vivo ou morro por que/Porque sou vivo e vivo prá cachorro/E sei, que cérebro eletrônico nenhum me dá socorro/Em meu caminho inevitável para a morte/Só eu posso chorar quando estou triste/Eu cá com meus botões de carne e osso/Eu falo e ouço/Eu penso e posso” “O Cérebro Eletrônico” G. Gil.

¹Os apologistas da Razão, e das funções cognitivas, estão sempre diante de dois desafios: 1-como explicar que, para a consolidação plena da memória, sejam necessárias as fases mais profundas do sono (a mais irracional das atividades humanas)?; 2-por que a privação longa do sono (a mais irracional…), desorganiza completamente aquelas funções? É em camadas mais profundas (pouco racionais) que a cognição se apoia.
²O título do livro que vai ser lançado: “Humano Além do Humano” faz alusão sutil a dois livros e um conceito de F. Nietzsche: “Humano, Demasiadamente Humano”, “Além do Bem e do Mal” e ao “Übermensch” (“Além do homem”). Aqui, o autor revelou uma espirituosidade inacessível a qualquer máquina.

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ