Temas e Controvérsias

O PORQUÊ DA NOSSA DECEPÇÃO PARA COM O CFM

CRYA medicina brasileira foi ferida gravemente. A RM, depois de mais 30 anos de formalização, afirmação e crescimento, corre o risco de desaparecer, caso as medidas previstas no DLei  nº 7562 sejam verdadeiramente implementadas. Desde 2005, quando o MS promoveu um certo “Primeiro Forum de Residência“, essa intenção ficou evidente. Era uma questão de tempo. As medidas de agora são apenas mais um passo para o objetivo final de diluir a RM na RMulti. O pior de tudo, entretanto, foi a forma desrespeitosa com que as Comissões Regionais da RM foram tratadas. Em 2005, ficamos muito felizes em ver os representantes do CFM lutando ombro a ombro conosco. Hoje, por alguma razão ainda não suficientemente compreendida, passaram para o outro lado.

Alguns poderão pensar, se, nessa luta pela manutenção da RM em um situação diferente das demais, o que mais estaria pesando seria nossa tendência ao isolacionismo, soberba e arrogância. Eu responderia que, sem dúvida essas expressões e sentimentos existem, mas os médicos têm todas as razões para resistir, momentaneamente, a esse enquadramento junto às outras residências:1-somos a inspiração e o paradigma dos princípios que geraram o conceito de “Residência Profissional”; 2-as demais estão em processo de consolidação; 3-a origem desse conceito, há mais de cem anos, nasce do RESIDIR, propriamente dito, implicando uma inserção total (ou quase) de uma profissão nos HOSPITAIS. De todas as profissões que hoje compôem a RMulti, somente a enfermagem tem história e inserção semelhantes (por vezes até maior). Por que desfazer algo que está organizado, cresce e influencia a melhora da saúde e dos hospitais, em função de algo que ainda procura sua afirmação?

A própria RMulti, em alguns aspectos, tem funcionado apenas como “4 Residências”: enfermagem, psicologia, s. social e TO, coordenadas centralmente. Isso fica óbvio no processo seletivo, onde há: repartição igual das vagas específicas para cada uma daquelas profissões, mas também nas provas, apresentando questões específicas para os candidatos de cada profissão. No curso do tempo, poderá haver até questionamentos legais a respeito. Há, sim, que encontrar atividades comuns entre as várias profissões. Parece evidente, entretanto, haver duas forças inevitáveis em jogo: uma no sentido da centralização, outra no sentido oposto e elas são inerentes aos fatos da vida, não decorrendo de resistências individuais, vaidade ou soberba. O administrador público que não o perceber estará agindo como quem tenta enfrentar os ELEMENTOS. O resultado poderá ser o oposto do procurado: em vez de união, mais atritos.

É possível que caminhemos, naturalmente, para uma centralização das diversas Residências. Com certeza, porém, esse não é o momento para a diluição de toda a estrutura da RM na RMulti—como é desejado no MS. Na sondagem das intenções de gestores públicos, importam pouco os discursos. É o “movimento das peças no tabuleiro” que as denuncia. Ter começado aquele processo pela sugestão da diluição da RM na RMulti, faz supor ser esse, ainda hoje, o objetivo principal do DLei. Parecem querer retirar o que consideram PRIVILÉGIOS e PRERROGATIVAS dos médicos. Antes de tudo, entretanto, há que diferenciar muito bem essas duas palavras. PRIVILÉGIOS, de qualquer ordem, não há mesmo por que aceitar. PRERROGATIVAS, são as inerentes a qualquer profissão. Diz a palavra literalmente: aquilo que não precisa ser rogado².

Quando estava na direção do IPUB, fui procurado, certa vez, pela farmacêutica que, um tanto constrangida, disse haver se formado, em nosso ambulatório e a partir de “malfadadas” amostras grátis, uma verdadeira farmácia. Estavam: médicos, professores e funcionários (esses através da “orientação” dos primeiros) distribuindo medicamentos sem o controle da farmácia. Reafirmei ser aquela uma prerrogativa da sua profissão, não violável por qualquer diretor e nem pelo P. da República. O problema foi resolvido, embora nós médicos tenhamos a tendência a nos considerar “acima” desse tipo de controle, sem nos darmos conta do quanto, com essas atitudes, desorganizamos os serviços.

Agora, os motivos para o nosso luto. Lutar contra atitudes intempestivas dos governos é a sina de quem teima em ficar próximo das bases: lugares onde as coisas acontecem e junto às pessoas que “tocam” o mundo, verdadeiramente. Difícil é se acostumar à traição de princípios, especialmente quando atinge nossa mais importante entidade representativa. Mais do que se omitir, o CFM deu seu apoio às medidas que retiraram poder dos médicos para influenciar o seu próprio destino. Quem traiu o futuro daquela maneira, não haverá mesmo de ter futuro.

Aguardei um pronunciamento oficial nas edições dos jornais do CFM e do CREMERJ. Nada, apenas o silêncio! Todos têm o direito de pensar e defender o que bem entenderem. Pessoas comuns até podem se calar. Entidades representativas não! Especialmente quando participaram do processo. Parecem constrangidos por suas próprias atitudes. Seu silêncio é uma confissão. O que dizer, então, da aceitação de um bônus que deforma e perverte “oficialmente” os próximos concursos para a RM e contra o qual quase toda a categoria está se insurgindo ?

Se fosse só a RM!!! Mas não…As distorções atingem muito mais áreas da medicina brasileira! Está implícito no DLei o envio de médicos recém-formados, sem preparo suficiente, para áreas onde não poderão dispor de qualquer apoio. Vão recém-formados; podem voltar “recém-deformados”. É bom que os médicos vão para o interior e conheçam as condições em que vive boa parte de nossa gente. Mas apoio e preceptoria são indispensáveis. Diante disso, as cobranças da CNRM, quanto à presença permanente de preceptoria nos atos de MRs, tornaram-se de difícil defesa. Por que essa cobrança é necessária dentro de hospitais que dispôem de recursos (no caso de complicações), e não o é longe de qualquer possibilidade de apoio imediato? Ouvi de alguns “Ah!, mas são procedimentos muito simples. Qualquer médico os aprendeu na Faculdade!” E os diagnósticos?! Para isso, respondem “Mas 95% dos casos são coisas banais”. E os outros 5% que, para o clínico, devem ser 100%? Não são números aquilo que tratamos. Se as políticas públicas precisam se basear em números, a clínica é sempre individualizada.

Condenar o MS? Somente pela truculência aplicada e pelo tipo de aliança que procurou. Têm o direito de aplicar políticas que consideram adequadas ao Brasil. Para isso estão lá. Estão errados, mas isso é o que devemos tentar provar. Há um equívoco enorme em aplicar modelos que funcionaram há 50 anos, e em um “país-ilha”, a um “país-continente”. Todos reconhecem o valor do modelo que, em Cuba, priorizou a saúde pública e desmistificou a crença de que, somente através do desenvolvimento tecnológico³, os problemas de saúde seriam resolvidos. Nenhum ponto daquela Ilha, entretanto, dista de uma cidade mais do que algumas dezenas de Kms. A proposta o MS se baseia em um anacronismo, mas há não nada a condenar, até que o fracasso do empreendimento fique evidente. Condenável mesmo, apenas uma aliança sem princípio: oportunismo, de um lado, e fisiologismo, do outro. E o MEducação? Depois de uminíco promissor, a atual gestão, entrou em “vida vegetativa” e todas as suas iniciativas têm fracassado.

¹Em verdade, tinham ocorrido vários outros, mas aquele deveria marcar a dissolução da RM na RMulti, daí o “Primeiro…“.

²A mais dramática de todas as situações de ataque a essas prerrogativas foi a denúncia por Stalin de uma “conspiração médica contra os membros do politiburo”. Em sua necessidade de poder absoluto, não se conformava com o poder médico. Aos engenheiros havia imposto o traçado de um canal. Em relação aos médicos (muitos deles judeus) o que lhe restava era a PARANÓIA. Morreu menos de dois anos depois. Antes, porém, matou alguns dos mais respeitados médicos da URSS. Entre nós, o desrespeito a essas prerrogativas levou Tancredo à morte.

³A grande novidade, oferecida ao 1% mais ricos na população dos EUA, são as viagens espaciais. Em sua alienação, vivem mesmo “no mundo da lua”. Não nos enganemos quanto ao poder da tecnologia para fazer melhorar a vida dos povos! Nem o céu é mais o limite para os caprichos e extravagâncias de alguns seres humanos.

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ