Temas e Controvérsias

PARECE MILAGRE…QUEM SABE É VENENO?!

("VEJA"...MAS NÃO PROVE OU TOQUE...PODE INTOXICAR!)
Capa380
“Veja” se superou em mau gosto e manipulação.

Temos acompanhado com interesse os esforços do CFM para regulamentar e normatizar as propagandas feitas por médicos e serviços médicos. Um dos seus maiores objetivos parece ser abolir as peças do tipo “Antes e Depois“. Há sempre uma intenção malévola nesse tipo de propaganda, pois, além de todos os falseamentos que implica (especialmente nas imagens), induz à idéia da garantia de resultados. Esse tipo de divulgação não é digna de ser associada à saúde e deve depor muito negativamente sobre quem o utiliza.

Disciplinar os médicos, aplicando suas prerrogativas, não será muito difícil. Bem mais trabalhoso, há de ser convencer à sociedade, como um todo, dos malefícios desse tipo de divulgação, quando associada a qualquer produto ou atividade ligada à saúde. Há muito tempo, laboratórios e outros, valem-se da imprensa leiga para isso. Nesse sentido, e como costuma acontecer, a revista “Veja” se superou em mau gosto e manipulação.A imagem de sua capa (set/2011) conseguiu reunir tudo o que se deve banir nessa área. Até mesmo uma seringa está lá…Esse instrumento, cuja visão, fora da mão de profissionais de saúde, tem sido muito mais associada ao uso irregular de substâncias do que às intervenções mais propriamente médicas!!!

Não é preciso ter uma imaginação muito mórbida—talvez apenas a malícia suficiente para desarmar a malícia dos outros—para ver ali uma sugestão à automedicação, e na sua pior face: da autoinoculação. Quem vive de estudar as melhores maneiras de bem manipular imagens, de modo a também manipular aqueles que as apreciam, não tem o direito de dizer que nem pensou nisso:

1-Uma mulher, já anteriormente muito bela, mas um tanto “fora dos padrões estéticos que infernizam a vida das mulheres”¹;
2-Uma seringa “milagrosa” ligando-a à imagem desejada e sem qualquer “intermediário”!
Quem quiser que faça outras interpretações. Esse caso deveria ser usado por nossas Associações de classe de maneira a coibir certos abusos. Depois reclamam da regulamentação da imprensa!²

Que fenômeno será esse que faz com que essa revista consiga adicionar mau gosto e perversão a tudo aquilo em que “coloca a mão”. Diríamos mesmo ser ela uma espécie de “Rei Midas ao contrário“? Agora mesmo, agiu como se fosse um serviço de espionagem, violando a privacidade de políticos e até tentando subornar empregados de um hotel, certamente visando a instalação de microfones para gravar conversas. Não faz muito tempo, assistimos à divulgação das práticas sujas de um tablóide inglês, reconhecidamente voltado à promoção de escândalos. No caso da revista, porém, que sempre tentou se apresentar como leitura preferencial de uma certa “elite endinheirada”³, isso só poderá resultar em desmoralização e perda de leitores. Quem há de querer se identificar com essas atitudes?

É, aliás, também em relação à discussão de medicamentos, e outros recursos para emagrecer, que se vem travando uma discussão desgastante para os médicos. Os esforços do CFM pela liberação da SIBUTRAMINA (mesmo com a comprovação de seus riscos para a saúde) não reforçam nossa imagem junto à sociedade. A defesa de um termo de responsabilidade, a ser assinado pelo paciente e pelo médico, como disse Francisco Paugarttem (CATEME-ANVISA): “…é inaceitável eticamente porque transfere ao paciente a responsabilidade” (OGlobo 04/9/11). Como sabemos, essa responsabilidade é intransferível, uma vez que é da total competência do médico. Aquilo de que nossos colegas não se dão conta é de que essa tentativa, além de inócua—pois quem se sentir prejudicado irá à Justiça e deverá ganhar, uma vez que até fumantes têm ganho causas contra produtoras de fumo—como esvazia nosso papel em relação à sociedade.
Há nessa discussão, porém, algo mais sutil que precisa ser dito e discutido à luz do dia. Há algumas décadas, a medicina vem observando aquilo que muitos dos nossos colegas consideram “uma invasão indevida de sua área de competência”. Há mesmo alguma invasão de área, mas há também, da parte de muitos nós, um esforço de monopolizar certas atividades sem que, para isso, exista qualquer base de sustentação teórico-prática. Um exemplo é a improvável submissão obrigatória dos psicólogos à indicação médica para realização de psicoterapias. Nessa área, por sorte (ou azar, segundo alguns) há um diferencial natural de competências: a prescrição medicamentosa é exclusiva dos médicos, além de bastante segura e efetiva. Como, ao contrário, parece não haver medicamentos muito confiáveis para o emagrecimento (ao menos é esse o teor da discussão), nossos colegas, ligados ao estudo da obesidade, talvez estejam preocupados com uma perda de diferenciação; quase uma crise de identidade?! Quem disse, entretanto, que a identidade dos médicos se associa principalmente aos remédios? Quem sabe não estamos provando o “gosto amargo” da apologia dos remédios, feita pelos laboratórios e à qual temos feito coro? “Viciamos” nossos pacientes, deixando que relacionassem o jaleco branco e o estetoscópio ao remédio. Quando não temos um à mão, sentimo-nos órfãos e inúteis?
Somos, ou já fomos, muito mais do que isso! Historicamente, as pessoas se acostumaram a ver em nós muito mais do que gente de branco que abaixa a cabeça—depois de alguns minutos—e preenche papéis (nem sempre de maneira desinteressada). Já fomos—quem sabe não somos ainda?—uma referência não só para a saúde, mas também para outros valores igualmente elevados. Quem sabe, não foi essa “prisão aos remédios” a razão principal para que as pessoas começassem a procurar por apoios e escuta em outros campos menos distantes das suas vidas?
¹Alguém já fez a associação dessa apologia da magreza a uma moderna dessexualização das mulheres. Quando G. Bünchen e Leonardo de Cáprio estiveram em uma aldeia indígena, os índios perguntaram se ele estava doente e disseram que, naquela aldeia, ninguém por ela se interessaria. Não há “fôrmas” para a beleza e dela faz parte uma sensação de saúde e bem estar.
²A imprensa não pode continuar a ser “terra de ninguém”, onde impera a “lei do mais forte”. Uma boa regulamentação haverá até de protegê-la contra arbitrariedades como as que são cometidas por R. Correa no Equador. Não deixou de ser curiosa, porém, a reação da imprensa quando ele apresentou uma propaganda, na qual, ao abrir um jornal, um leitor é atacado por “cobras e lagartos”. Não gostaram nem um pouco de provar de seu próprio veneno.
³Nenhum grupamento humano deixa de produzir uma elite. Quem pode negar esse papel à intelectualidade, mas também aos artistas populares? Sorte da cultura que produziu Pixinguinha, Cartola, Ataulpho Alves, Didi, Nilton Santos…ficando apenas naqueles que sempre cultivaram uma dignidade natural e sem arrogância! O problema está quando essa elite se volta contra aqueles dos quais poderia ser, verdadeiramente, uma elite. Eis o “elitismo”! Só os mais vazios se contentam na ostentação igualmente vazia.
Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ