Temas e Controvérsias

SÍNDROME DE DESVIO QUALITATIVO DA NORMA

Este texto, a rigor, deveria ser uma continuação do “Glossário de Expressões eTermos: Controversos, Inapropriados ou mesmo Errados, de Uso Corrente em Psiquiatria“. A expressão que vamos discutir, entretanto, envolve tantos conceitos e suas combinações, que exigiu um espaço muito maior e específico.
Uma frase pomposa pode até soar bem, mas isso não é suficiente, especialmente quando se destina à classificação de transtornos psiquiátricos ou psicológicos. Há aqui diversas combinações de termos, todas inadequadas.

SÍNDROME, como todos sabem, é um conjunto de sinais e sintomas; conjunto esse que pode ser originário de mais de uma entidade nosológica (ou fatores etiológicos). Por definição, sinais e sintomas implicam um salto de qualidade; não são meras variações quantitativas. Ocorre, porém, que a expressão-título tem sido aplicada para os TRANTORNOS DA PERSONALIDADE, os quais implicam, também por definição, variações apenas quantitativas “da norma”. Damos exemplos:
1-Para a caracterização de um transtorno paranóide da personalidade, não podemos encontrar delírios ou idéias deliródes de perseguição; quando muito idéias de autoreferência. Sem esse cuidado, como fazer sua diferenciação em relação à SÍNDROME PARANÓIDE (essa sim, um salto qualitativo importante)?
2-Um luto é uma variação quantitativa extrema (e até adaptativa) em relação ao afeto de tristeza, considerado completamente normal. Um luto complicado atinge as fronteiras da DEPRESSÃO. Já essa última, implica sempre um salto de qualidade em relação à variação considerada normal.

DESVIO, é um termo que deve se restringir às variações quantitativas, contrariamente ao termo “SALTO” que é aplicável às variações qualitativas: VARIAÇÕES QUANTITATIVAS “versus” SALTOS DE QUALIDADE. Nada melhor, nessa discussão, do que observar o que se passa com a água, em sua passagem para os estados líquido e gasoso. Pequenas variações de quantidade vão se sucedendo, até que, em um dado momento, ocorre um salto de qualidade. Há vários exemplos para isso, também na nossa área: são muito típicos os gráficos evolutivos para peso e altura aplicados por pediatras. Dessa forma, e a partir de alguns desvios da curva, eles identificam e caracterizam dificuldades mais ou menos sutis na evolução de uma criança (variações quantitativas). Quando, porém, estão diante de um nanismo ou marasmo, por exemplo, não mais falam de meros desvios da curva, mas de um transtorno específico, algo novo, uma doença a melhor caracterizar; ou seja há,nesse caso, um marcante salto qualitativo.

NORMA: parece-nos haver até um certo anacronismo no uso dessa palavra, muito associada aos esforços de controle e enquadramento das pessoas. Bem melhor é pensar em CRITÉRIOS (bastante flexíveis) PARA NORMALIDADE. Apesar dos protestos de muitos, é impossível deixar de se preocupar com a caracterização de uma faixa de normalidade para todos os fenômenos humanos. Como seria, por exemplo, possível aplicar políticas de saúde pública sem esse tipo de consideração? Nesse sentido, o primeiro critério é o ESTATÍTICO. Assim, tudo aquilo que foge demais a uma média é considerado anormal. Que esse critério não deve ser suficiente, especialmente em psicologia, parece-nos óbvio. Uma inteligência muito acima das curvas seria anormal e, no outro extremo, certos achados evidentemente patológicos—como apresentar cáries dentárias, por exemplo—seriam considerados “normais” apenas por serem muito frequentes em alguns grupos populacionais. A curva normal, ou de Gauss, é o melhor instrumento para estabelecer limites, segundo esse critério. É aplicada para características determinadas por multiplos fatores e herança por múltiplos gens. Há que estar atento, nessa aplicação, para o surgimento de curvas bimodais (formato do Pão de Açucar), indicando uma diferença qualitativa em uma variação que parecia linear.

Muito importante, é a aplicação de um outro critério, o TELEOLÓGICO: normal seria, então, aquilo que representasse a MAIOR E MELHOR ADAPTAÇÃO de um espécime de uma espécie qualquer. O grande problema, nesse caso, é a entronização de um ideal de ser humano (totalmente fora da vida) como objetivo a alcançar. A psicanálise sofreu desse problema, tal sua apologia de um certo “aperfeiçoamento” dos seres humanos. Era, em outros tempos, praticamente impossível alguém deixar de ter indicação para a sua realização. Nenhuma política pública pode ser sequer imaginada a partir desse critério. Há, ainda, um critério EVOLUTIVO: observação de fases de evolução. Assim, há que considerar o período da vida em que as pessoas se encontram também como um critério. Achar ser possível, a partir dessas considerações, uma normatização das pessoas, vai uma distância enorme.

É bom que não esqueçamos de um outro critério também evolutivo: a evolução de uma cultura, através dos tempos, em uma sociedade qualquer. Muitos comportamentos que foram considerados “desviantes”, em alguns momentos, são hoje, mais do que meramente aceitos, valores a cultivar. Por essa razão, há uma arrogância enorme em considerar que os padrões aplicados por certos grupos populacionais—e mesmo classes sociais—nos dias que correm, é uma espécie de “ideal a alcançar”.
É a partir de seus pontos frágeis que as sociedades evoluem (Nietzsche, em algum momento em sua obra).
Completaríamos: é a partir de seus pontos frágeis que os ossos crescem, assim como o crânio, que precisa da “moleira” para continuar a crescer, acomodando-se a um cérebro em expansão¹. Por essa razão, somos profundamente céticos em relação a políticas para identificação precoce de transtornos psiquiátricos e/ou psicológicos e de populações de alto risco. Mais do que promover prevenções, corremos o risco da estigmatização e antecipação de problemas que, talvez, nunca se apresentassem. Mais perigosas ainda, parecem-nos intervenções, especialmente médicas, muito precoces e incisivas, antes de uma caracterização de sinais e sintomas. Melhor, do nosso ponto de vista, é atuar apenas nas situações de sofrimento e desequilíbrio que se tornaram insuportáveis, sem esquecer, é claro, da promoção de melhor qualidade de vida.

Por fim, a preocupação que levou à criação da expressão-título está totalmente deslocada de contexto e de “Eixo”. Um dos grande achados do DSMIII foi exatamente a criação de um EIXO específico para que se assinale o tipo de personalidade em um paciente qualquer, caso tenha sido possível sua caracterização. Por isso: ALI NÃO SE DEVEM FALAR EM SÍNDROMES, apenas tipos de personalidade. Por essa razão, e com frequência, ele ficará simplesmente vazio. O primeiro eixo, sim, e originalmente, foi idealizado para caracterização de síndromes, em um processo progressivo para a chegada a uma boa HIPÓTESE DIAGNÓSTICA NOSOLÓGICA (de um Transtorno). Por alguma razão, que estudaremos oportunamente, passou-se a tratar o Eixo I como se fosse diretamente para o transtorno, gerando alguma confusão.

¹Seria, então, em torno dessas pessoas tidas como “desviantes”—menos vinculadas aos valores vigentes em um lugar e época e, por isso mesmo, consideradas um “ponto fraco” dessa mesma sociedade—que se gestariam as mudanças enriquecedoras (no sentido da diversidade) dessas mesmas sociedades.

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ