Temas e Controvérsias

Termo de Abertura

Se, por um prodígio qualquer, algum dos grandes psiquiatras da história voltasse aos nossos tempos; reunisse todas as principais revistas de psiquiatria do mundo e lesse apenas os títulos de seus artigos, julgaria que, das duas uma: ou os pesquisadores passaram a aparecer no mundo completamente “formados” (do ponto de vista do saber ligado à propedêutica, semiologia e psicopatologia), ou, então, teriam sido desenvolvidos métodos e tecnologia tão “avançados” que tornaram desnecessários seu antigo esforço pelo desenvolvimento daquele tipo de saber. Afinal, os critérios aplicados ultimamente na seleção de artigos, praticamente excluem os voltados a esses temas.

Uma simples leitura dos textos dessas mesmas revistas, contudo, deixaria evidente a presença de aplicações no mínimo duvidosas de conceitos básicos, sugerindo que muitos deles não foram bem entendidos. Recentemente, avaliando artigo para o JBP, vimos uma amnésia lacunar ser denominada anterógrada, somente porque a amnésia permaneceu “para adiante”. Um conceito básico não havia sido aprendido: amnésia anterógrada implica a incapacidade para novos registros a partir do seu início e não uma simples lacuna permanente. Apontar possíveis ocorrências semelhantes haverá de ser uma das funções dos textos que se seguirão (embora saibamos que ninguém está livre de erros e que eles talvez venham a ser até mais frequentes neste espaço).

A clivagem entre a boa clínica e a atividade de pesquisa em geral parece estar se agravando continuamente. Com uma frequência preocupante, os clínicos chegam a precisar se proteger de certos “conhecimentos” e técnicas que lhes são apresentados como “grandes novidades”, mas que se mostram prejudiciais. Poucos são os pesquisadores que desenvolvem suas pesquisas nos locais onde a clínica e a vida pulsam verdadeiramente: enfermarias, ambulatórios, CAPS e outros serviços abertos a qualquer paciente em potencial e não apenas aos “por patologia específica”. Além disso, muitos daqueles clínicos se sentem até um tanto abatidos pelo desprezo com que tem sido tratado tudo o que aprenderam e cultivaram em sua vida profissional. Para sua sorte, é nos próprios pacientes que encontram a confirmação cotidiana da importância dos instrumentos que dominam.

Esse processo atingiu o paroxismo com o surgimento da assim chamada BIBLIOMETRIA. Em nome da ciência, foram desenvolvidos inúmeros índices de avaliação da qualidade e importância das pesquisas (e dos pesquisadores pessoalmente), baseados principalmente em números frios, estimulando a submissão dos jovens e a sua perda de espírito crítico, em um processo que só poderá resultar em esterilização generalizada. Desde tempos imemoriais, sabe-se que a criatividade e a imaginação implicam liberdade de espírito e passam pelo exercício da crítica. A tendência à alienação em relação à vida tem sido de tal ordem, que, em vez do “Em nome da Ciência”, tudo parece caminhar mais para uma espécie de “Em Nome da Rosa” (pedindo desculpas pela corruptela do título) com seus “mosteiros de paredes cibernéticas”, pois tudo parece destinado a servir principalmente aos próprios envolvidos e não à sociedade em geral.

“A melhor demonstração do que vai dito é a frase que os orientadores de artigos estão repetindo para seus orientandos: “Escreva somente pensando no editor e nos pareceristas. Não se preocupe com quem vai ler depois“. Para que se complete o espírito dos mosteiros faltam apenas os muros, mas quem disse que o mundo moderno precisa de muros concretos?

Quem pode desmerecer a importância da boa e criteriosa pesquisa? Quem pode negar serem os bons métodos de investigação o que de mais diferenciado e refinado um saber qualquer pode desenvolver? Essa diferenciação e refinamento, porém, precisam funcionar como uma espécie de “flor de uma planta ou árvore frondosa”: a boa clínica. Somente a boa clínica pode impedir a compartimentalização do conhecimento. Por outro lado, da mesma maneira que a ontogênese repete a filogênese, cada iniciante precisa passar por todas as fases do processo, sob pena de nem conseguir bem situar suas próprias e possíveis descobertas. Como alguém já disse, só conhece bem uma ciência qualquer, aquele que bem conhece a sua história.

Desprezar o conhecimento que deu origem a todo o processo, funcionaria como se aquelas mesmas “flores” pudessem desprezar as raízes que as alimentam e os galhos que as sustentam. Quando algo do gênero começa a acontecer, e quando quase todos só falam “Em nome da Rosa”, mais que nunca, é tempo de começar a falar “Em nome das Raízes”.

Márcio Amaral, vice-diretor IPUB-UFRJ, Prof. Adjunto UFRJ e UFF