Temas e Controvérsias

Uma boa nova para a Saúde Mental

O artigo que Giovanni Guido Cerri e Valentim Gentil Filho fizeram publicar em “O Globo” (“Lacunas na Saúde” 02/09/11) deve ser recebido como uma espécie de marco para o desenvolvimento de uma relação respeitosa entre os profissionais de saúde mental, independentemente das formações teóricas ou crenças de cada um. Parece ter chegado, finalmente, a hora em que os profissionais de nossa área vão começar a ouvir e pensar na razão dos outros. As discordâncias continuarão a acontecer, e devem ser bem vindas, desde que respeitosas. Ninguém tem o monopólio do saber, especialmente em uma área como a nossa que abrange tantas formas diferentes de saber e é sensível ao efeito (benéfico ou maléfico) de vários tipos de intervenção.

De nossa parte, diríamos que assinaríamos quase tudo o que vai ali escrito. Esse “quase”, aliás, seria apenas uma espécie de medida preventiva, para o caso de não termos observado uma ou outra sutil diferença de opinião. Mais do que uma simples declaração de intenções, considerando a importância do papel social e acadêmico dos seus redatores (Secretário de Saúde do maior Estado da Federação e um dos mais respeitados e reconhecidos professores de psiquiatria do Brasil), aquela mais se pareceu com uma plataforma de compromisso com políticas públicas, de maneira a avançar na prevenção, assistência e integração à sociedade das pessoas que sofrem de transtornos mentais. O próprio título do artigo é também muito expressivo, pois reconhece haver uma boa base inicial de trabalho.

A psiquiatria brasileira tem muito boas referências, e grande tradição de procura do entendimento, para que continuassem a ocorrer os ataques puramente destrutivos que se observaram nos últimos anos. Até para que as coisas continuem a avançar, precisamos das opiniões contrárias. Nesse sentido, gostamos de lembrar da atitude de nosso colega João Ferreira (ex-diretor do IPUB-UFRJ), cuja generosidade nem as pessoas que dele não gostavam conseguiam negar: se o profissional era sério; tinha a graduação necessária; um bom projeto e trabalhava com dedicação, criavam-se as condições para que o levasse a efeito. Quem, na nossa área, pode dizer de onde sairão novas descobertas e modelos para fazer avançar o conhecimento?

Nem da população carcerária os nossos colegas de São Paulo se esqueceram em seu artigo. Está lá: “Temos desafio semelhante na reformulação da assistência à população prisional e carcerária, um problema a ser urgentemente enfrentado“. Há muito tempo, demo-nos conta de que é nessa disposição a priorizar o cuidado com os mais alijados de uma sociedade, que um administrador expressa a sua preocupação e interesse pelos seres humanos em geral, sempre tem enormes desdobramentos para toda a sociedade. Ao lado disso, e a propósito, a última semana trouxe à luz um acontecimento sobre o qual todos os médicos devem refletir profundamente. Confessamos um sentimento de vergonha, ainda que momentânea, com a notícia de que, na Guatemala, na segunda metade da década de 1940, “pesquisadores médicos” norte-ame ricanos inocularam material infectado para doenças venéreas em cerca de 2400 pacientes psiquiátricos, encarcerados e prostitutas.

A associação desse fato com as falsas pesquisas de Mengele (e outros que portavam diplomas de médico) é imediata. Os acontecimentos da Guatemala, porém, e do ponto de vista da medicina, são mais graves. Conseguimos um certo distanciamento em relação aos atos dos campos de concentração nazistas, embora isso represente uma alienação. Olhamos para aqueles acontecimentos como muito distantes de nossa prática e formação. Em relação aos acontecimentos da Guatemala, porém, isso não é sequer razoável. Quem não associa todos os grandes avanços nas pesquisas laboratoriais (em medicina e farmacologia) aos norte-americanos?

Que fenômeno é esse que faz com que algumas pessoas passem a tratar seus semelhantes como animais distantes na escala filogenética? Como se dá esse fenômeno da desumanização lenta e inexorável? Os relatos de Primo Levi (“É Isso um Homem? “), sobrevivente de Auschwitz, talvez forneçam uma pista. A grande lição daqueles campos era não pensar em futuro e obter o suficiente apenas para sobreviver aquele dia e de maneira totalmente individual. Eis a desumanização! Somente com a progressiva derrocada alemã e com os canhões russos ouvidos ao longe, as pessoas começaram a ter alguma esperança e desenvolver maior solidariedade. Temos a impressão de que qualquer encarceramento, implicando ausência de perspectiva de saída, com alijamento e ruptura com os laços com a sociedade, vai produzindo, em quase todas as pessoas, um processo de desumanização. Não apenas nos que sofrem, mas também nos que o promovem¹.

Por que nos alongamos tanto no parágrafo anterior? Porque nossos colegas também frisaram muito os riscos implicados no alijamento de pessoas de uma sociedade. Nós, que nos acostumamos, durante as lutas contra o regime militar, a contar com os “bons ventos” que vinham de S. Paulo—reconhecendo um maior compromisso histórico dos governantes daquele Estado com os interesses de sua população, especialmente quando comparados aos do Rio de Janeiro—recebemos com enorme esperança os compromissos tornados públicos por seu Secretário de Saúde e pelo representante da maior universidade do Brasil. Enquanto isso, no nosso Estado, a tendência tem sido exatamente oposta: desinvestimento social e política voltada ao alijamento compulsório de pessoas. Quem sabe se o exemplo de S. Paulo não nos servirá de inspiração?
¹Pior talvez seja hipocrisia. Tudo aquilo era e contibua proibido no “solo sagrado da América”, mas que seu governo continue a promover torturas e confinamentos mundo afora, eles não estranham.

Vice- Diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ