Arte e Cultura

B. HELIODORA: UM ESPECTRO RONDANDO A VIDA TEATRAL DO RIO!

(MAIS PARA RACINE DO QUE PARA SHAKESPEARE)
Márcio Amaral

NOTA: como os leitores poderão ver, este texto estava escrito há muito tempo e esperava uma oportunidade para ser aproveitado. Infelizmente, ele continua a ser atual, embora as pessoas não estejam mais levando tão a sério as palavras da senhora B. Heliodora. Fui testemunha do mal que ela causou a alguns jovens artistas.
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Shakespeare ( 1564-1616)

Tornar-se uma referência cultural deve ser o objetivo principal de qualquer crítico de arte. Na esfera da arte dramática, tivemos dois bons exemplos de críticos que, de maneira discreta e respeitosa, atingiram esse objetivo: Yan Michalski (Rio) e Décio A. Prado (SP). Antes de tudo, sabiam quantos esforços, expectativas e dinheiro são necessários para erguer qualquer espetáculo e não perdiam de vista a possibilidade de estarem errados. Nas últimas décadas, porém, uma outra atitude passou a ser a regra na atividade de uma crítica teatral que assina colunas em “O Globo”, a senhora B. Heliodora. À maneira de uma inquisidora e dotada de muito perigosas certezas, tornou-se temida por boa parte da classe teatral de nossa cidade. A omissão de muitos e o desespero de alguns transformaram-na em um espectro ameaçador. Talvez seja hora de discutir esse papel a partir de algumas teses.
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Racine (1639-1699)

Toda a aura de mistificação que se formou em torno de sua figura iniciou-se a partir da crença no seu “conhecimento profundo” da obra de Shakespeare. O estudo, porém, de todo o processo de afirmação do próprio Shakespeare fora da Inglaterra (frente ao teatro clássico francês, principalmente) e a leitura do libelo de Stendhal, “Racine e Shakespeare” (1823), sugerem fortemente que o tal “conhecimento profundo” nada mais é do que um ornamento ou uma espécie de chapéu de espantalho, usado para impressionar e assustar os mais desavisados.
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Ser um “especialista” na obra de um autor ou personagem histórico não implica, necessariamente, uma compreensão e sintonia profundas com esse mesmo autor ou personagem. Essa compreensão está muito para além do mero conhecimento intelectual ou vasta informação. Exige um como que “ser arrastado para a mesma atmosfera“; uma sintonia que faça sofrer dores parecidas e desfrutar de prazeres semelhantes. Há vários casos para exemplificar a tese: Sócrates, muito utilizado por Platão na defesa de suas próprias ideias (em alguns casos, totalmente opostas às do seu mestre) e Nietzsche, que foi apresentado, “revisto” e deformado, frequentemente, por M. Heiddeger.
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Em sua autobiografia, diz Stendhal ter sido, desde sua infância, tomado por um enorme mal estar com a apologia de Racine ouvida em sua própria casa. A descoberta de Shakespeare, com sua liberdade de encenação e linguagem, como que lhe abriu um mundo novo. Tudo no teatro francês lhe parecia artificioso: a submissão à lógica, o excesso de racionalidade e o cerceamento à imaginação. Já em Shakespeare, o que mais o impressionou foram a força da imaginação e a liberdade conseguida na ação. Enquanto, em Racine, tudo era comedido, com “medidas justas” e atitudes visando um falso ideal, no “bárbaro” bardo inglês havia a explosão de vitalidade em toda a sua brutalidade e grandeza.
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Só para que se tenham ideia do quanto de inspiração “shakespeareana” existe na “grande especialista em Shakespeare”, em uma crítica elogiosa (23/06/2010), ela se valeu das seguintes expressões:…“impecável na execução da medida justa…coerência tão exata da linguagem…exibição tão clara de certeza…criteriosamente controlado…sempre apenas na medida…estabeleceu com precisão…sem cair no excesso nem por um momento…”. Eis uma apologia da racionalidade digna de um geômetra! Sem demérito aos geômetras, uma pessoa sintonizada com as artes nunca se valeria dessas expressões para julgar uma obra de arte. Em vez de uma boa e flexível forma, tudo ali aponta para uma “FÔRMA” muito estreita e cheia de “medidas justas”.
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Em maio de 2010, criticando uma peça montada por jovens e bem realizada (“O ENXOVAL“), valeu-se do seguinte título em letras garrafais: “DESASTRE SEM SALVAÇÃO!”. Condenava ela, principalmente, a “ingenuidade insanável” do espetáculo e eu, que aprendi a ver na ingenuidade uma virtude, recorri àquele que é considerado um dos maiores críticos de arte da história: C. Baudelaire. E o que encontrei? A ingenuidade como uma conquista e uma vitória contra o artifício e a arrogância: “…O belo sempre contém um pouco de extravagância ingênua não deliberada e inconsciente” (Expos. Universal, !855). Será que o Shakespeare dos sonetos muito líricos (e até um tanto ingênuos) são desconhecidos pela grande “especialista”?
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Stendhal (1783-1842)

Seguindo no mesmo caminho, disse ela, pejorativamente, ser a peça mais adequada aos “circos ambulantes“. Mas, se foi em cortejos e com saltimbancos que o teatro se firmou nas terras mais variadas!? Ou ela acha que o teatro já se iniciou em grandes casas de espetáculo? E dizer que, em Hamlet, é um teatro/circo ambulante que dá ensejo ao desenrolar da trama no castelo! Não! Não há nada de shakespeareano naquelas críticas e, certamente, muito pouco nas atitudes dessa senhora.
Quero o lirismo dos clowns de Shakespeare“- “Poética” M. Bandeira
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Por fim, em uma entrevista (Roda Viva) e respondendo à pergunta quanto a possíveis qualidades especiais do atores brasileiros, respondeu serem eles bons “…quando não querem aparecer“. Quanto absurdo! Um artista que não quer aparecer! Mais adiante, contudo, entendi haver ali apenas uma espécie de confissão, afinal, o que ela mais tem feito é “aparecer” pisando nas pessoas de cujo trabalho se alimenta.
Quem sabe se, um dia, ainda que em sonho, não lhe aparecerá o “espectro de Shakespeare” e, à maneira do que sucedeu a Saulo, perguntará: “Por que usas meu nome para perseguir aqueles que tentam se inspirar em mim?! Afinal, nessa eterna luta entre tendências, ela é uma defensora visceral (talvez sem o saber) do teatro clássico francês, contra Shakespeare.

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