Arte e Cultura

“GENTE DE HEMSÖ”*: UMA NOVELA DE A. STRINDBERG

strindberg jovem

(De onde vem a solidariedade da “Suécia profunda”?)

NOTA: Este texto estava escrito há muito tempo. Nesse intervalo, julguei-o um tanto ingênuo demais, especialmente pelo alinhamento do país com os EUA e a perseguição a J. Assange. A matéria lida em El Pais, sobre o acolhimento de refugiados sírios na Suécia, fez-me decidir por sua publicação. “São alojados em apartamentos distribuídos pelo país, recebem um pagamento mensal e logo começam os cursos intensivos de sueco. Cerca de três meses depois, já com os papéis em ordem, passam às mãos das prefeituras, que buscam alojamentos definitivos e os ajudam a encontrar emprego” (El Pais,15/11). Há mesmo algo de diferente no grande país do norte. Ali, e por razões que discuto abaixo, o espírito capitalista nunca sobrepujou de todo a dimensão humana.

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Márcio Amaral, vice-diretor, IPUB-UFRJ

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A “Suécia profunda” é, antes de tudo, solidária: nunca perde aquele compromisso mínimo que todo ser humano (e as sociedades em geral) precisa e deveria—até para seu próprio bem—ter para com todos os outros seres humanos. Quem pisar no seu solo pacificamente não ficará ao relento, dasamparado ou passando fome. Agora estão indo até além, como em outros tempos, quando foram próativos no acolhimento de refugiados chilenos e outros. Esse parece ser um princípio tão entranhado no povo, que não precisa de leis, discursos e nem depende do partido no poder ser de direita ou de esquerda. Algo que toda a humanidade precisa resgatar impera naquelas terras de muitos lagos e baías.

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Por uma feliz coincidência, li a novela  de Strindberg “Gente de Hemsö“, enquanto estudava aquela que teria sido a maior revolução cultural da história da humanidade: o desenvolvimento da agricultura intensiva no Oriente Médio, de 8 a 9 milênios atrás. Ali se iniciaram: a posse violenta da terra; o acúmulo de riquezas por alguns homens; a servidão/escravidão da maioria; o direito de herança, principalmente para os homens (por vezes só para o primogênito); a prostituição e….a FAMÍLIA (deriva de fâmulo: empregado doméstico). É esse o modelo, do ponto de vista da exploração dos homens, que impera até hoje—apesar de algumas abolições de escravaturas e outras modificações adaptativas a novos tempos—na maioria dos países ocidentais. Algo de muito valioso começava a ser sacrificado no altar da posse individual e do poder sobre as vidas de outros seres humanos. Na Suécia, esse processo parece NÃO ter atingido os extremos que conhecemos bem. A dimensão humana, de alguma forma, sempre se preservou por lá.

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Até cerca de 9000 anos, os grupos de seres humanos eram nômades. Somente alguns grupos tinham conseguido se fixar, sempre próximos a baías ou grandes rios, e viver basicamente do produto da pesca, complementada por alguma caça e coleta de frutas e raízes (como muitas tribos brasileiras até hoje).  Não havia acumulação de riquezas, mas um compartilhamento de comida e das condições básicas para a existência. A divisão de tarefas (complementares) dava-se mais entre homens e mulheres. A linhagem era matrelinear e a lua o referencial para contagem do tempo (estágio em que em que se encontravam as tribos norte-americanas, quando da invasão européia**). Como era de se esperar, o sol (o “pai da agricultura”) passou a ser a maior referência da sociedade, desbancando a lua até na contagem de tempo. Nunca mais seria ouvido “Daqui a duas luas…”! As mulheres foram aprisionadas no lar, ao emprego doméstico ou aos prostíbulos. Caim, o agricultor, matou Abel, o poético guardador de rebanhos, mas sofreu um estigma e foi condenado por Deus a pagar pelo pecado, vagando por todo o mundo e sem encontrar paz. Somos todos um tanto seus “herdeiros”: também estigmatizados pela perda de um valor maior nas relações humanas, vamos “globalizando” a exploração e a transformação de tudo em números.

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strindberg idoso

Foi esse novo sistema de produção que gerou o primeiro grande império da  história, o egípcio. Em quase toda a Europa, esse novo sistema de produção e organização social teve uma progressão um tanto tardia, mas avassaladora. Em um período relativamente curto, teve fim o antigo modo de viver. Nos países escandinavos, entretanto, tudo se deu de maneira um pouco diferente. Além do mar e dos lagos continuarem fornecendo bastante alimento, a agricultura demorou muito a se impor, principalmente por haver um curto período do ano agricultável e pedras…muitas pedras…e ainda mais pedras à flor da terra***. Com isso, os dois sistemas conviveram por milênios em alguma harmonia. Lembram-se daquele compromisso para com todos os seres humanos, que era a tônica da organização social anterior? Na Suécia foi mantido, pelo menos em parte, e talvez isso tenha se devido às mulheres, que nunca aceitaram bem a submissão e perda de “status”, juntamente com a lua.

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Esse é o “pano de fundo” do romance de Strindberg (início do séc. XX), e como sintoniza com a história mais profunda do seu país! Um administrador, tendo alguns rudimentos de técnicas de agricultura e contabilidade, vai administrar uma propriedade decadente (segundo seus próprios parâmetros) na ilha de Hemsö, onde o povo ainda vivia basicamente da pesca. Os conflitos entre os hábitos dos moradores, de um lado, e o representante dos “novos tempos” de outro—com toda a imoralidade associada ao acúmulo de riquezas, até seu casamento por interesse com a proprietária viúva—estão ali mostrados com mão de mestre. A igreja e seu pastor, tão ridicularizados no início da história, acabam sendo os únicos elementos de harmonia entre os diversos personagens do drama/tragédia: o fator de equilíbrio e contato entre os “dois mundos”.

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O administrador, muito simbolicamente, acaba tragado pelo gelo que vem quebrando progressivamente em sua direção, enquanto os outros, que tinham também se aventurado a pé, conseguem escapar correndo. Um súbito vento impulsionara (da entrada na baía) as ondas em direção à praia. Um pouco antes, aquele mesmo administrador (agora dono da propriedade) gritara para todos, em uma situação corriqueira: “Cada um por si e Deus por todos!“: esse triste lema que entroniza o egoísmo predador e ainda se vale do nome de Deus para descartar a solidariedade em relação ao próximo. No momento, porém, em que todos têm que correr para não serem tragados pelo mar entrante, o “homem de escrivaninha” implora que esperem por ele, ouvindo de volta: “Agora…é cada um por si”! Mas não por egoísmo ou crueldade: apenas por que, caso contrário, morreriam todos. Diante da fúria dos elementos, não há mesmo resistência possível. Por fim, torna-se mais uma vítima direta de um dos muitos efeitos anti-humanos da “nova ordem” do mundo moderno: o sedentarismo. Engordara muito ultimamente.

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Logo na sua chegada, o administrador quer “restabelecer a ORDEM”, levantando e reerguendo cercas. Para isso, é imprescindível que ele se “coloque em nível superior aos demais” (uma outra forma de cerca, simbólica). Também muito simbólica, é a surpresa do povo lugar com o fato de ele ter um relógio, até por que ainda organizavam suas vidas de acordo com o movimento dos astros e sua luz. Quando o administrador, apenas para conquistar o poder—pois encontrava muita resistência por parte do filho da viúva—seduz a pobre mulher indefesa, os empregados ficam muito preocupados, pois “…um estranho…através do casamento, abocanharia aquilo que consideravam um bem comum…”. Quando, e em que outros lugares, os empregados considerariam uma fazenda um bem comum? E a solidariedade ao próximo, que permite a todos os que chegavam a uma pequena ilha do arquipélago “…acender o fogão, pois o último visitante não se esquecera do velho costume de empilhar uma braçada de lenha para quem viesse depois…”!

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Casinha sueca, de uso comum por pescadores e outros, na qual sempre se encontra uma braçada de lenha
Casinha sueca, de uso comum por pescadores e outros, na qual sempre se encontra uma braçada de lenha

Morto o administrador, de quem o pastor também não gostava, seu esforço passa a ser: como salvar alguma coisa do legado daquele homem que, de alguma forma, havia influenciado tanto a vida de todos por ali. Disse o pastor ao filho da viúva: “…você está sendo injusto com ele…Ele não construiu uma nova casa?…Que tenha se casado com sua mãe, ora, ela não queria também?…Carlsson era um sujeito de iniciativa…fez tudo aquilo que você gostaria de ter feito, mas não conseguiu…Há outros pontos de vista sobre as pessoas além do seu”O efeito dessas palavras sobre o rapaz é enorme e ele pede que o pastor diga algumas palavras em memória do falecido: “…é um belo gesto pensar nele, apesar de tudo–disse o pastor mais comovido do que gostaria…”Entendo tudo isso como um esforço de encontrar um valor e algo de sagrado em todas as vidas humanas acontecidas nesse planeta.

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É por tudo isso, que não consigo levar a sério as tentativas de muitos suecos, especialmente os mais jovens, para se parecerem com os norte-americanos. Suas possíveis semelhanças são apenas de superfície. As correntes mais profundas, determinantes das duas culturas, são opostas! Enquanto nos EUA, a riqueza se fez a partir do esmagamento de todo um povo constituído de bravos, na Suécia tudo foi muito diferente! Tão humanamente superior! Por que não dizer?! Aquilo que não consigo aceitar, é que os suecos deixem de afirmar, nas relações com outros países e no atual desconcerto entre as nações (especialmente as européias) seus valores tão superiores (por que não dizer também?). Um dia, ainda haverão de resgatar um papel que Olof Palme levou ao paroxismo e (quem sabe?) até o exagero.

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*Ilha imaginária, cujo nome é formado por: Hem– casa e Ö– ilha: algo assim como “Ilha da Casa”. Havia mesmo uma grande casa na ilha o que a diferenciava da demais.

**Ver “Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”: estudo de F. Engels baseado em trabalhos de L.H. Morgan sobre os indígenas americanos.
***Sem ter essa informação, é impossível avaliar a importância do papel da descoberta da dinamite pelo sueco Alfred Nobel.

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