Arte e Cultura

GRACILIANO: CATIVEIRO NO PORÃO DO NAVIO!

(Samba em alto mar…no cárcere…na escuridão e até por sob a água)

Márcio Amaral, vice-diretor, IPUB

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“…Desejo de ir além das aparências; tentar descobrir nas pessoas qualquer coisa imperceptível aos sentidos comuns. Compreensão de que as diferenças não constituem razão para nos afastarmos…” (Memórias do Cárcere: VIAGENS- 11)

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NOTA: deverá se seguir aqui uma série de artigos sobre o “MEMÓRIAS DO CÁRCERE”. A associação que a ela me levou foi a leitura do calvário de GRAMSCI nos cárceres fascistas. Há muito tempo, lera com o maior interesse a obra do nosso grande escritor (preso na mesma época que o italiano/sarraceno, década de 1930) e reparei nos destinos tão diferentes dos dois a partir de então: Gramsci para a sepultura e Graciliano para o reconhecimento literário e humano. Há muito, eu tinha uma tese: fora a proximidade com a gente simples (muitos deles criminosos) que injetara vida e riqueza cultural na vida de Graciliano. Tese agora muito reforçada pela releitura. Título futuro:“GRAMSCI E GRAÇA NO CATIVEIRO” (O alto preço de afirmar sua individualidade). Eis que, na releitura, esbarro em um dos mais poéticos e misteriosos trechos da literatura brasileira: um libelo de amor à gente simples do Brasil; de sua música; de seu samba… Inspirou-me poesia e música. Modestamente e sem julgar qualidade, tem um quê de “samba épico” (“EPOPEIA DO SAMBISTA PAULO PINTO”). Fiquei pensando: quantos atos grandiosos, cheios de lirismo e coragem aconteceram por aí sem que houvesse alguém para fazer o seu registro!!! Ouvir lá embaixo.

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Trata-se da viagem que Graciliano fez no porão do navio “Manaus”, entre Recife e Rio de Janeiro, em 1936 (VIAGENS-28): mais de 100 homens amontoados, na escuridão, péssima alimentação e dejetos se acumulando para todo lado:

“… De repente me feriu um som lento e queixoso, semelhante a um longo gemido…Estaria alguém a morrer?…O lamento chegou-me de novo, mais próximo, arrastado e nasal. Que seria? A voz dorida saía da treva e arrepiava-me a carne. Tentei discernir alguma palavra, inutilmente; só aquilo: o extenso  brado lastimoso a avizinhar-se. Esboçaram-se pouco a pouco as modulações de um canto, na verdade, bem estranho. Quem se abalançaria a executá-lo em semelhante lugar? Apurei os olhos e os ouvidos e percebi, lá embaixo, PAULO PINTO a iniciar um samba. Estava de pé e gesticulava, fingindo mover um ganzá inexistente…A princípio, aquilo se engrolava em um resmungo confuso (por medo?)…As precauções desapareceram, as notas elevaram-se…ganharam nitidez; o queixume pareceu se transformar em dura exigência….

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Algumas vozes se juntavam à do sambista; formava-se um áspero conjunto e a torrente sonora engrossava, transbordava; novos afluentes vinham se juntar, mudar-lhe o curso…um rumor de cólera surda…corpos a se levantar das redes, figuras aniquiladas a surgir da noite, espectros ganhando carne e sangue, pisando o solo com firmeza. Tinham estado em perfeita indiferença, numa resignação covarde e apática…respeito a autoridades invisíveis…Em minutos isso desaparecera. As espinhas curvas aprumaram-se; as expectativas e a tosse haviam cessado; os pulmões opressos lançavam gritos roucos, a animar a toada monótona do coro….dezenas de trastes humanos se erguiam…braços para cima, florestas de membros nus, magros e sujos, e o canto ressoava como profunda ameaça….A polícia ia descer e restabelecer a ordem? Sem dúvida.

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Súbito percebi movimento desusado no exterior….Passageiros da primeira classe investigavam nossa furna, curiosos; provavelmente iam reclamar do barulho que chegava aos salões e os aborrecia. Agora Paulo Pinto e os companheiros estavam parados por baixo da abertura…representação sem ensaios, de improviso. A plateia comprimia-se num círculo, entusiasmava-se…. Aguardei pelos protestos…em vão…Vivo interesse nas fisionomias: contagiavam-se…As vozes se espalhavam e cresciam, (os cantores)expunham raiva e desespero, as mãos se levantavam, os dedos se moviam, tinham jeito de garras, queriam despedaçar, rasgar, quebrar*. Em resposta, difundiam-se lá em cima sorrisos de aprovação. Aquilo era absurdo e incoerente…Tinham admitido a segregação, ninguém a considerava injusta. Pela manhã…espreitavam-nos e não se avizinhavam, temiam infeccionar-se com a lepra moral que nos consumia…

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De repente soaram palmas. que se havia passado? Hesitava em persuadir-me, desconfiava dos ouvidos e dos olhos: os indivíduos suspeitosos e hostis vinham aplaudir a violência e o ódio que ferviam no porão? E o tumulto se desenrolava sob uma chuva quente de louvores. …No dia seguinte deslizaríamos taciturnos e oblíquos; falaríamos baixo…naquela noite, porém, largávamos as cautelas…livres de receios. A arte de PAULO PINTO nos dava força às almas tristes, aos corpos fatigados. E comovia espíritos indiferentes, arrancando deles a aclamação que estrugia sobre nossas cabeças….”

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*Julgamento típico de um homem do agreste. Nós, do samba e do litoral, pensamos logo em “aproximações muito humanas, através da cultura e para além das classes”. Mas…Quem sabe não há ali uma enorme verdade original, até no sentido INICIAL mesmo: captadas pelo primeiro olhar de uma criança! Sim! Graciliano conseguiu manter “sua criança” intacta. E é mesmo verdade: o samba é uma ameaça, em um sentido amplo, a todos os abusos dos poderes discricionários. Por isso, nas solenidades (vide OLIMPÍADAS) somente se os executam depois de…ESTILIZADOS, ou seja, transformados em outra coisa que não um…SAMBA. Em relação aos seus “100 anos”, parece-me tolo falar em data de nascimento de uma expressão cultural que já se afirmara bem antes. Algo assim como…se uma criança não existisse só porque não tem registro em… CARTÓRIO. Mas fica o registro…nada cartorial.

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GRACILIANO NO CÁRCERE

(“…arredio, espinhoso e agreste…”)

………..(1-O HOMEM E SEU POVO)

GRACILIANO, toda a força indomável do agreste

Se desdobrando em muitos e espinhosos RAMOS.

Não se conformou em ser somente um bom mestre

Se embrenhou fundo nas “VIDAS

SECAS”, surradas e sofridas

E agora sua prosa nos obriga……

A repensar tudo aquilo em que acreditamos.

…………..(2-PRISÃO E VIOLÊNCIAS)

Seus inimigos nunca puderam imaginar (Que)

Um homem doente e tendo o corpo a definhar

Preso sem acusação, julgamento ou cumprir pena

Sacasse da pena e sem ódio ou qualquer pena

Passasse de repente, pena a pena,  a depenar

O muito desumano mecanismo militar….

……..(3-VIAGEM E AMBIENTAÇÃO)

No porão, bem junto ao casco do velho navio “MANAUS”

Numa sujeira de dar asco, onde imperavam horror e caos

Um olhar tudo abarcava, buscando a compreensão..

Superar tudo que entrava olhar o outro como irmão.

Pobre ou “terrateniente” a terra (nos) engole no final

Melhor é ver, humildemente, cada um como um igual (Assim)

Atingia fundamente até o coração dos maus.

…………..(4-CENA: MISTÉRIO E LUZ)

Subitamente um lamento/Subindo da escuridão…

Parou o tempo um momento/E as batidas do coração.

Em meio à turba havia um bamba (que)Tava puxando um bom SAMBA…

Como crescia a marcação,/Fazendo vibrar todo porão!

………(5-ARRASTANDO TODOS)

Caiam rimas do céu/Saltavam rimas do chão…

Corpos vagando ao léu…/Almas em conciliação!

Aplausos desciam do deque/Até da tripulação

Só o samba sem salamaleque/Pode ter esse condão.

………(6-RESOLUÇÃO E RETORNO à situação prévia)

Era Paulo Pinto/Um sambista respeitado

Que na luta contra o ESTADO/Escolhera bem seu lado.

Negro livre e aventureiro/Que em novo “navio negreiro”

Inventava uma comunidade/Encarnando a sutil brasilidade.
(Sim! Cada um dos nossos sambas é um hino à liberdade!)

………….Mas…

Logo vazou para a saudade/O momento fugaz da UNIDADE.

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