Arte e Cultura

O AUGE DO ASCETISMO: PAPA GREGÓRIO “O GRANDE”-IV

(De como as vítimas se transformam em algozes! Reproduzindo as torturas)
Márcio Amaral, vice-diretor IPUB

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“Os doentios são o grande perigo para a humanidade…desgraçados, vencidos, destroçados – são eles…os que mais corroem a vida…mais perigosamente envenenam nossa confiança na vida…” (NIETZSCHE, Para a Genealogia da Moral-III-14)

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Toda a grandeza* do Papa Gregório “O GRANDE” (540-604) é associada à defesa do ASCETISMO como condição para uma vida monástica e também para servir de inspiração a todos os seres humanos. Não por acaso, as doenças estiveram no centro da sua vida:

“Durante quase 2 anos estive confinado à minha cama sendo castigado pela dor…estou diariamente no ponto de morrer…Almejo a morte” (Gregório I citado por W. DURANT, H. das Civilizações).

E então, e a partir de sua teologia, desenvolveu-se uma verdadeira competição entre os monges quanto a quem conseguia submeter seu corpo a privações e flagelos cada vez mais dolorosos: “…Serapião morava em uma caverna… onde poucos conseguiam chegar. Quando Jerônimo lá chegou encontrou um…quase um esqueleto…Alguns jamais se deitavam para dormir…Outros…passavam anos sem dizer uma palavra…Tendo adoecido, Macário recebeu algumas uvas…mandou-as para outro ermitão que fez o mesmo para outro e assim por diante, até que as uvas voltaram intactas às mãos originais”. (Idem)

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CANTO GREGORIANO: UM GEMIDO INFINITO NA NOITE

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Essa foi a TEOLOGIA que infernizou (e ainda inferniza) a vida dos mortais, desde Gregório-I: “…Pregou com energia a religião do terror que iria obscurecer a mente humana…Os próximos sete séculos aceitariam essa teologia e os escolásticos tudo fariam para lhe dar a forma da Razão**..” (Idem). Talvez uma das mais expressivas manifestações dessa teologia seja o “CANTO GREGORIANO”. Reconhecendo sua importância e beleza, há ali uma luta contra todos ritmos, em geral e contra as danças e expressão corporal em especial. Trata-se de um último esforço (malogrado, como todos nessa área) de romper a ligação SIAMESA existente entre a música e a dança. A ironia é que o maior desafio de um bom regente e encontrar e manter uma PULSAÇÃO na sua execução, sem a qual não se pode falar de música. E o que é a pulsação, senão o RITMO ou ANDAMENTO DA VIDA? Aquele foi o esforço mais longo e concentrado contra os ritmos e a DANÇA até hoje. E fracassou! Curiosamente, e no final da I. Média, houve algumas “epidemias de dança”*** em várias cidades da Europa nas quais as pessoas dançavam sem parar e, em alguns casos, até morrer. A mais conhecida delas deu-se a partir de Estrasburgo, em 1518 (curiosamente, um ano depois de Lutero divulgar suas Teses que desembocariam na “Reforma”). Voltando ao Canto Gregoriano, um dia me imaginei na mais escura de todas as noites, ouvindo sua execução do lado de fora de um monastério. O efeito seria, necessariamente, o de longo e belo gemido por um animal aprisionado; o animal que temos em nós e que nos sustenta até hoje, apesar de tudo o que temos feito contra “ele”…NÓS MESMOS.

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Esse “reinado absoluto” de ascetismo e culto ao sacrifício—realizado apenas em função do próprio sacrifício—durou quase exatamente 1000 anos, quando Montaigne dele fez seu alvo principal de ataque. A descoberta de povos vivendo em condições naturais—e vivendo melhor, especialmente nas AMÉRICAS—pesou bastante nesse enfrentamento do ascetismo: “…Os homens veem a realidade ao avesso: imaginam que só o desagradável pode ser útil…Tudo o que me repugna sei que é prejudicial e nada que me apetece me faz mal. Nenhum ato inteiramente agradável jamais provocou algum mal ao meu organismo; daí ter feito, não raro, de meu prazer a minha receita” (Montaigne, “Ensaios”: 3-XIII)Pela primeira vez alguém tratava aqueles ” ideais” como um “MAL EM SI”, algo do qual a humanidade precisava se libertar (ver texto anterior). E nós, brasileiros, deveríamos nos orgulhar dos novos ventos que nossos povos originais lançaram sobre uma Europa apodrecida por falsos ideais totalmente contrários à vida! Talvez a EUROPA esteja precisando novamente de novos ares…quem sabe daqui?

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OS ALEMÃES, LUTERO E A VOLTA DO ASCETISMO!

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“…O sacerdote ascético é a encarnação do mais alto grau do desejo de ser outro…Com ele mantém apegado à vida um rebanho de malogrados, desgraçados.., deformados, sofredores de toda espécie, colocando-se instintivamente à sua frente como pastor… (Nietzsche, GM 13-III)

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M. Lutero é um dos personagens mais contraditórios dentre todos os que pisaram nesse planeta. Estava longe de ser um ascético. Podemos até supor que sua sensualidade explícita estava na base da REFORMA: queria se casar; raptou (com cumplicidade da própria) uma religiosa por quem se apaixonara e se casou. Além disso, agia muito mais como um REFORMADOR SOCIAL diretamente do que como um pregador. E aqui desenvolvo uma tese que acalento há algum tempo: em paralelo ao ideal ascético e a ele associado há SEMPRE grupos exercendo práticas das mais violentas e opressivas contra os povos. São também “irmãos siameses”: o ascetismo e a submissão pregados para os povos e os poderes mais despóticos aos quais o primeiro serve. Assim, o correlato de GREGÓRIO I foi a dinastia que se inicia com PEPINO-I (580-640, seu contemporâneo); dinastia essa que atingiu seu auge com Carlos Magno, aquele que submeteu totalmente os povos germânicos. Dando um salto na história, o ascetismo (um tanto hipócrita) pregado por HEIDEGGER (em seu “Existencialismo” fantasmagórico) é o correlato dos horrores que seu muito apreciado HITLER capitaneou. Lutero consegue encarnar os dois: atacou violentamente os excessos que a “libertação” do ascetismo estava causando em Roma****; vestiu-se de preto e condenou as vaidades, mas também “autorizou” as matanças de camponeses de forma a acabar com as revoltas camponesas na Alemanha: “…É uma ninharia para Deus o morticínio de um lote de camponeses, pois ele afogou a humanidade inteira por meio do Dilúvio, e fez desaparecer Sodoma por meio do fogo.(LUTERO, M. “Contra as hordas salteadoras e assassinas de camponeses”, 1525.

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KANT..HEGEL..SCHOPENHAUER..HEIDEGGER: A VOLTA DO ASCETISMO

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Nunca viram um epilético, remeloso, desdentado ou curvado pela idade”. MONTAIGNE, sobre os índios da GUANABARA

Deixemos de fora aquele que considero o maior filósofo alemão antes de Nietzsche: GF LEIBNIZ (1646-1716), até porque parece não ter sido muito ascético: homem do mundo, envolvido em grandes causas. Ingleses e americanos não o perdoam por conta da superioridade que demonstrou em seus embates com NEWTON. Talvez por isso, seu não reconhecimento pleno. Estaria para Einstein como Copérnico está para Galileu, pois defendeu serem espaço e tempo relativos 200 anos antes. Como deixar de apreciar I. Kant? Mas quanto mal pode ter causado sua apologia da virtude e perfeição ao ponto de comprometer a própria vida! Se, com o Papa Gregório, havia a apologia da tortura física propriamente; com Kant a tortura passou a ser toda ela mental e moral. Sua maior vítima? Ele mesmo, basta olhar a gravura ao lado para ter essa certeza: “…chegar a cumprir todas as leis morais implica não encontrar nem mesmo a posição de um desejo que incitasse alguém a delas se separar, pois superar tal desejo importa sempre algum sacrifício ao indivíduo…”. (Crit. da Razão Prática, cap 3); “A lei moral, a santidade e a virtude devem exercer alguma influência em nossa alma (desde que) se apresente com um móvel puro e despido de toda consideração de interesse pessoal (idem, Segunda Parte). Toda a felicidade estaria reservada APENAS a uma vida posterior à associada a um corpo.

………CONTINUA: TEXTO DEDICADO A MONTAIGNE

*A própria vaidade, implícita nesse “O GRANDE” é já um desmentido quanto à possibilidade de nos desprendermos completamente do amor-próprio. Há que separar o ORGULHO muito saudável e afirmativo diante de realizações, da VAIDADE, significativamente derivada de VAZIO.

**Essa última sentença é impressionante. Com muita frequência, falsos intelectuais ficam tentando dar novos significados às proposições perversas dos poderosos. HEIDEGGER é um bom exemplo para tanto.

***Eram danças GROTESCAS e sem qualquer graciosidade; problema do qual os europeus em geral não se libertaram até hoje. Quando se tenta expulsar a natureza dentro de nós, ela sempre encontra, como um POLVO, algum meio de expressão. Como não temos a sua flexibilidade, porém, expressa-se com tortuosidades, gestos grotescos e condutas perversas.

****Foi Nietzsche quem o apontou em “O ANTICRISTO”. Todo o moralismo de LUTERO usava a corrupção como desculpa para atacar a libertação dos povos em relação ao ASCETISMO.

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