Arte e Cultura

PODER DAS SOCIEDADES “vs” DO CAPITAL PRIVADO-II

(Alemanha: de como o jovem Nietzsche viu bem mais longe do que Engels)

Márcio Amaral

………………………………………………..

NOTA: o tema aqui abordado seria apenas uma passagem na argumentação. Ampliou-se tanto que se tornou um texto específico. Poderia intitulá-lo: “O DESPODER DAS SOCIEDADES FRENTE AO ESTADO CENTRALIZADOR E BUROCRÁTICO/MILITAR”.

……………………………………………

“…Nem o entusiasmo pela glória militar, nem as exaltações à ‘magnificência do Império Alemão’ encontraram eco entre os operários alemães; seu objetivo era a emancipação de todo  proletariado europeu…” (F. Engels: sobre a Guerra Franco-Prussiana-; Prefácio de 1874, aos 53 anos)

……………………………………………………………..

“…um erro difundido é o de que a cultura alemã venceu essa guerra…É uma ilusão altamente perigosa…capaz de convertê-la em um descalabro: a extirpação do espírito alemão em benefício do Império Alemão” (F. Nietzsche “Considerações Extemporâneas”, 1873, aos 28 anos)

………………………………………………………………………….

O jovem Nietzsche
O jovem Nietzsche

Desde que li os muito surpreendentes ataques do jovem Nietzsche ao militarismo alemão e sua denúncia dos riscos que sua recente vitória sobre a França implicavam para toda a humanidade e para a cultura em geral—contrariando todo o ufanismo que tomara conta de seu país—não somente fiquei muito impressionado, como estranhei nunca ter tido notícias de textos produzidos por Marx e Engels a respeito. Lera uma parte considerável de sua obra conjunta e individual, mas nunca esbarrara em considerações sobre aquela guerra que tanta importância desempenhou na história alemã e de toda a Europa desde então. Podemos mesmo afirmar que os desastres mundiais testemunhados no século seguinte foram uma evolução natural da afirmação do IMPÉRIO ALEMÃO em 1870. Finalmente, tive em mãos as considerações de Engels sobre a GUERRA FRANCO-PRUSSIANA, escritas em um prefácio à “Guerra Camponesa Alemã” (Ed. Alfa-Omega, SP, 1976). O desenrolar dos fatos mostrou que Engels estava totalmente errado e que o alerta de Nietzsche, talvez por tomar sempre a cultura como referência, confirmou-se plenamente. Não demorou muito para que o “DEUTSCHLAND ÜBER ALLES” tomasse quase todo um povo.

…………………………

Contrariamente à afirmação de um dos formuladores do “socialismo científico”, também o operariado alemão terminou por se deixar enfeitiçar pelo “…júbilo e embriaguez…dos periodistas e dos escritores de novelas, tragédias, poemas e histórias*…que se apoderaram das horas de ócio e das digestões do homem moderno…para o aturdir com uma montanha de papel impresso…Era de se esperar que os perigos desse ‘abuso de sucesso’ fossem reconhecidos pela parte instruída da Alemanha; que percebesse quão lamentável é ver um corcunda se pavoneando diante do espelho com sua própria imagem” (Nietzsche, IDEM, Ed. Aguillar, Madrid)). Afinal, a vitória nos campos de batalha devera-se ao mais puro militarismo: “…à severa disciplina e a uma obediência totalmente submissa…que não têm relação com cultura propriamente dita…”. A própria Cultura, em si mesma: “unidade de estilo artístico em todas as manifestações da vida de um povo…”, fora a grande derrotada no acontecimento.

……………………………………………………

Muitos poderiam questionar de que forma uma cultura rica e muito intimamente ligada a um povo poderia servir como uma garantia contra o militarismo e o “chauvinismo” (“cultivo de falácias etnocêntricas”). Por definição, a cultura é o maior instrumento de aproximação entre os povos. A pessoas ligadas à cultura identificam, de imediato, outras pessoas que também o são(identificando-se individualmente com elas), independentemente de nacionalidades. O vazio cultural da Alemanha da época: “…o povo alemão vive em uma confusão caótica de todos os estilos…misturas grotescas e justaposições de todos os estilos imagináveis. O alemão amontoa ao redor de si todas as formas, produtos e curiosidades em um modernismo de barraca de feira…” (Nietzsche, Idem), prenunciava os maiores desastres e eles vieram na cauda do desenvolvimento acelerado da grande indústria e do militarismo. Tudo isso estava já antecipado na obra de um jovem filólogo. 

……………………………………………………………………………………..

COMO UMA ANÁLISE “CIENTÍFICA” PODE LEVAR AOS PIORES ERROS

…………………………………………………………………..

F. Engels
F. Engels

Tudo leva a crer que Engels levou longe demais a expressão “Socialismo Científico” e, à maneira Hegeliana, caiu em um determinismo histórico, nada dialético na sua origem. Assim, menosprezou os riscos implícitos na situação: “…Como são pequenas as alterações que os acontecimentos da chamada ‘alta política’ podem introduzir no curso do do movimento histórico…!”(Engels, IDEM). Segundo esse raciocínio por CATEGORIAS, o “bonapartismo” do estado Prussiano (conduzido por Bismarck: expansão e invasão de outras terras e países) seria“…uma forma moderna de Estado, pressupondo a eliminação do feudalismo…traduzindo a linguagem feudal para a burguesa…Assim, a Prússia cumpriu seu destino de dar um fim, sob a agradável forma do bonapartismo, à revolução burguesa iniciada em 1808…”. Ocorre, porém, que essa tal revolução burguesa nunca aconteceu verdadeiramente na Alemanha. Ao contrário, praticamente todas as forças políticas do país (unificado recentemente, depois de outras guerras) terminaram por se submeter ao “Estado Bismarckiano”, contra os outros povos. Naquele paralelo feito com Bonaparte, além disso, Engels não percebeu uma diferença absolutamente essencial: enquanto Napoleão—pelo menos até 1802, quando se deixou coroar—carregava em si a perspectiva da eliminação da velha nobreza europeia e a libertação dos povos, o ESTADO PRUSSIANO sempre fizera do militarismo patriótico/chauvinista sua razão de ser. Ou seja: era uma ameaça a toda a humanidade desde o seu início.

…………………………………………………….

A crença em uma “evolução inevitável para o socialismo”, levou Engels a escrever algumas de suas piores páginas: “…se tudo for bem e se o mundo permanecer quieto e tranquilo…talvez vejamos, em 1900, a Prússia dar um fim a todas as instituições feudais…”. Acreditar, entretanto, que esse fim implicaria, necessariamente, implantação de um poder burguês pleno (com as lutas proletárias associadas e inevitáveis e uma “etapa para o socialismo) era um erro de graves consequências. Ele não contava com a possibilidade de que esse poder central burocráticopudesse se eternizar e impor na Alemanha, a ponto de se tornar uma característica nacional ainda muito viva**. Até mesmo uma contradição absurda F. Engels cometeu em sua avaliação. Nessa negociação entre a burguesia e o Estado: “…A burguesia adquire sua paulatina emancipação social ao preço da renúncia imediata a um poder político próprio…tudo por medo do proletariado…”. Eis uma contradição inaceitável: como adquirir emancipação social abrindo mão do poder político? RESULTADO: a tal “renúncia imediata ao poder” pela burguesia está durando até hoje. O poder central burocrático—sem sequer o “glamour” da nobreza, com sua capacidade de fomentar arte e cultura—encontrou seu destino na mecanização da grande indústria, com a burguesia seguindo “no vácuo”. O mesmo poder Prussiano, valendo-se do sujo “cemento” patriótico/chauvinista, empolgou até as classes trabalhadoras, uniu o país segundo o pior de todos os“Leitmotivs” (tema principal), rugiu para todos os lados e levou o mundo aos horrores que todos conhecemos.

…………………………………………………………………………….

GF. Hegel (1770-1831)
GF. Hegel (1770-1831)

Era o “espectro-Hegel” pairando sobre Engels e (quem sabe?) Marx. Enganam-se aqueles que julgam terem os criadores do materialismo dialético e do socialismo científico criticado e se libertado de Hegel levou aos extremos. Eles eram também por demais alemães. Havia algo de “antiiluminista” na obra Hegel: “A nação alemã principia a tomar consciência de si mesma. Agora que o povo alemão salvou sua nacionalidade, fundamento de toda a vida viva, é lícito esperar que, ao lado do Estado,…a Igreja venha a se soerguer além do reino do mundo…e volte de novo a pensar no reino de Deus…Nas demais nações da Europa, a filosofia desapareceu…ou se se conservou foi por uma característica peculiar alemã…Recebemos da natureza a missão de ser os guardas deste fogo sagrado…Consideramo-nos chamados pelo espírito mais profundo do tempo a reagir…e a cooperar com seriedade e probidade germânicas… retirando a filosofia da solidão onde se refugiara…”(Hegel- “Introdução à História da Filosofia***”: Os Pensadores, Abril Cultural,1974). É muito fácil perceber os ecos hegelianos na mente de Engels: “Os operários alemães têm duas vantagens essenciais sobre os do restante da Europa…pertencem ao povo mais teórico…Se não houvesse a filosofia alemã que a precedeu, sobretudo sem a filosofia de Hegel, jamais teria sido criado o socialismo científico alemão…” (Engels, IDEM).

…………………………………………………………………………….

E que clareza teve o jovem Nietzsche: “…o mais perigoso …subsiste ainda: a filosofia hegeliana. A crença de que somos seres aprisionados à nossa época é paralisadora…. Quando, então, diviniza esse aprisionamento como se fosse o sentido e o fim de tudo o que há ocorrido antes…equivalendo a uma realização da história universal, então essa crença nos parece terrível e devastadora… habituaram-se os alemães a falar em um ‘processo universal’ e a justificar sua própria época, vendo nela seu resultado necessário… Destronaram os poderes intelectuais, a arte, e a religião pondo em seu lugar a História: ‘o conceito que realiza a si mesmo’…De sorte que, para Hegel, o ponto culminante e final do processo universal coincidiriam com sua própria existência berlinense”! (Nietzsche: “Da Utilidade dos Estudos de História”; Segunda das Considerações Extemporâneas). Talvez a crítica de Hegel por Marx e Engels tenha deixado de pé o que havia de mais perigoso na sua filosofia. O mundo pagou muito caro pelo “determinismo histórico” que parasita muitas cabeças até hoje: “Quando alguém adoece do mal hegeliano nunca poderá sanar completamente…Os hegelianos e seus castrados sucessores!”. (Nietzsche- Primeira “Extemporânea”).

…………………………………………………..

É verdade que, desde as “Teses Sobre Feuerbach”, Marx e Engels reforçaram a necessidade da ação política para a modificação das condições da vida humana. Nunca, entretanto, abriram mão de um certo “DETERMINISMO HISTÓRICO”: evolução inevitável para o socialismo, respeitando certas ETAPAS também inevitáveis. Talvez encontremos aqui a origem e o mau uso da palavra “CIENTÍFICO” aplicada a SOCIALISMO por Engels. Estava associada à PREVISIBILIDADE. Deixemos de lado o conceito que CIÊNCIA que a associa à capacidade de PREVISÃO. Até na física, precisamos da convenção “CNTP”. A mente humana nunca domina todas as forças em um “jogo qualquer” da natureza, especialmente no que se refere às sociedades. Falemos em uma ATITUDE CIENTÍFICA HUMANA. É já uma grande conquista.

……………………………………………………………………………..

*Até o grande J. Brahms se deixou levar pela embriaguez patriótica e escreveu uma Cantata para Coro e orquestra (“Triumphlied”: Canção do Triunfo) em homenagem à vitória alemã. Suas musas, entretanto, vingaram-se duramente. Talvez seja sua pior partitura. Era Bismarck cantando…se é que algum dia ele cantou. Logo Brahms que era conhecido por destruir composições que considerava mal sucedidas! 

**Quando do início da crise que se arrasta de 2008 até os nossos dias, O Min. Alemão das Finanças, W. Schäube, convenceu os sindicatos dos trabalhadores a aceitar uma diminuição dos salários para “aumentar a competitividade” de sua indústria. Considerando que a imensa maior parte das exportações alemães é para países da UE, era uma medida… contra a Europa: seguiu-se uma quebradeira generalizada nas indústrias locais. Essa me parece a principal razão para a UE estar condenada. Somente a Alemanha dela se beneficia.

***Escrito em 1816. Napoleão estava derrotado, confinado definitivamente na ilha de S. Helena e a “Santa Aliança” se estabelecera na Europa. O narcisismo de Hegel era de tal ordem que ele tratava toda a filosofia que o precedera apenas como um preparativo para o “GRANDE ADVENTO” da filosofia alemã, culminando todo o processo nele mesmo, Hegel. Todos sabemos no que resultou o “messianismo e a superioridade” germânicos. Tempos depois, muito humildemente, Nietzsche chamou uma de suas mais famosas obras (“Para Além do Bem e do Mal”): “Prelúdio Para uma Filosofia do Futuro”.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *